A quem interessa criminalizar o usuário de drogas?

O País e a sociedade só têm a ganhar se o STF confirmar a inconstitucionalidade das punições a quem usa drogas

O encarceramento em massa de usuários de drogas, muitos deles enquadrados como traficantes, é uma das razões da superlotação do sistema prisional brasileiro. O Brasil tinha 607.700 presos em meados do ano passado. A estatística do Ministério da Justiça coloca o País em quarto lugar no ranking mundial de população encarcerada, tanto em números absolutos – atrás apenas de Estados Unidos, China e Rússia –, como em números proporcionais – atrás de Estados Unidos, Rússia e Tailândia. Um em cada quatro prisioneiros cumpre pena por tráfico de drogas. Entre as mulheres, esse percentual chega a 63%.

Este cenário é absurdo em diversos aspectos. O principal deles talvez seja a ausência de critérios razoáveis para a tipificação do crime de tráfico. Há quem esteja preso por ter sido flagrado com 0,1 grama de maconha.

Segundo a Wikipedia, no verbete “baseado”, um único cigarro de maconha contém tipicamente entre 0,25 grama e 1 grama da erva. Condenar alguém por tráfico por portar uma “ponta” com menos de um terço do volume de um único cigarro da droga denota a incapacidade da nossa Justiça em lidar com a questão.

São abusos que contam com o respaldo da lei, uma vez que, no Brasil, cabe ao policial, em um primeiro momento e, posteriormente, ao juiz, decidir quem é usuário e quem é traficante. Na prática, a regra é clara: branco rico de bairro nobre é usuário; preto pobre da periferia é traficante.

Um segundo aspecto, primo do anterior, é a anacrônica criminalização do usuário. Apesar da compreensão, hoje disseminada no mundo todo, de que o consumidor de drogas deva ser objeto de políticas de saúde pública, e não tratado como caso do sistema de justiça criminal, a Lei de Drogas ora em vigor mantém a possibilidade de condenação daqueles que portam pequenas quantidades, para uso individual.

O usuário já não responde com privação de liberdade desde 2006, mas continua sancionado. Isso significa, em rápidas palavras, que o jovem que traz consigo um baseado pode não ser preso, mas poderá ser julgado, condenado à prestação de serviços comunitários e, incongruência maior, deixará de ser réu primário. É o que diz o artigo 28 da Lei 11.343, de agosto de 2006. Sua incidência abrange “quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar” e também “quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica”.

Quem define, em conformidade com a lei, se o destino da droga (ou da planta) é o consumo pessoal? O juiz. De que jeito? Ele “atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente”.

No Brasil, não é preciso muita abstração para notar que droga no morro é tráfico, na agência de publicidade é uso pessoal; nas mãos do skatista negro é tráfico, nas mãos do operador do mercado financeiro é uso pessoal.

Na semana em que o Supremo Tribunal Federal (STF) discute a legitimidade da criminalização do porte de drogas para uso pessoal, é preciso estar atento às deformidades provocadas pela lei e agir de modo a corrigi-las.

Recentemente, a alta corte da Argentina decidiu pela inconstitucionalidade da criminalização do uso. Na Colômbia aconteceu o mesmo. O legislador e o juiz dispostos a aprender com a jurisprudência, com a prática adotada em outros países e, sobretudo, com o espírito do tempo, entenderão as muitas inconsistências na criminalização do uso.

Um dos elementos é a compreensão de que não compete ao Estado interferir em práticas individuais que não causam prejuízo a terceiros. Foi esse o entendimento da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, que moveu recurso no STF em 2011, depois que um homem foi condenado a prestar serviços comunitários por ter sido flagrado com 3 gramas de maconha.

Segundo esse entendimento, o Estado se porta como ente tutelar ao buscar impedir que um cidadão adulto faça uso de algo que lhe poderá fazer mal à saúde. Quem vende incorre em crime por induzir outra pessoa a risco, o que não acontece com quem apenas planta, cultiva, colhe, porta, detém ou compra para uso pessoal.

O passo seguinte, não menos urgente, é diferenciar de forma objetiva os usuários e os traficantes, algo que escapa à lei atual. Se isso não for feito, o sistema judicial vai continuar considerando pobre traficante e rico usuário. O médico Drauzio Varella chamou atenção recentemente para a posição de outros países em relação a isso. Segundo ele, tomando como exemplo a maconha, é permitida a posse de 5 gramas no México, 10 gramas no Paraguai, 15 gramas na Austrália, 25 gramas em Portugal, 28 gramas nos Estados Unidos e 200 gramas na Espanha. Na Espanha, também são permitidos até 7,5 gramas de cocaína. Se vigorassem no Brasil leis semelhantes às espanholas, o número de presos por tráfico de drogas seria um terço do atual.

Difícil saber a quem interessa criminalizar o usuário.

Certamente, não interessa ao sistema prisional brasileiro, a não ser aos que se entusiasmam com a ideia de privatizar os presídios e instituir remuneração à empresa concessionária conforme o número de detentos. Também não interessa à sociedade, na medida em que toda prisão por posse de pequena quantidade de droga só contribuirá para aproximar o usuário das facções criminosas que dominam os presídios. Tampouco a Justiça é beneficiada pela obrigação de julgar cidadãos detidos com 0,1 grama de maconha. E menos ainda o usuário, submetido de forma recorrente à arbitrariedade policial e à judicialização de uma questão de saúde.

A descriminalização do porte para uso pessoal, ao contrário, será um aceno importante, um passo fundamental para cuidar de quem deve ser cuidado e penalizar quem deve ser penalizado. Ao pensarmos a segurança pública e a urgência de uma nova política de drogas, é cada vez mais evidente que devemos nos concentrar no tráfico. O resto é fumaça.

(Artigo inicialmente publicado na revista “Carta Capital”, no dia 12 de agosto de 2015)

Paulo Teixeira é deputado federal (PT-SP)

Cristiano Maronna é vice-presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e secretário-executivo da Plataforma Brasileira de Política de Drogas

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