A terra como ativo financeiro e a Cédula Imobiliária Rural

Projeto que institui a Cédula Imobiliária Rural permite que investidores estrangeiros comprem e negociem a CIR, tornando-se, portanto, mais uma via para a entrada de estrangeiros, pessoas físicas e jurídicas, em nosso mercado de terras

LUIZA DULCI*

Os efeitos sociais de se trazer a lógica da especulação sobre o ativo terra, sem regulação, podem ser desde a inflação de alimentos, e a fome a ela associada, até degradações ambientais e violações de direitos trabalhistas e sociais

Está em tramitação no Congresso Nacional o Projeto de Lei da Câmara 212/2015, que visa a instituir a Cédula Imobiliária Rural (CIR). Em poucas palavras, a proposta da CIR autoriza o proprietário de imóvel rural a submeter sua área total ou fração dela ao chamado “regime de afetação” (segregação patrimonial), instituindo assim a CIR – um título de crédito que pode ser negociado na bolsa de valores.

Pelo regime de afetação, o produtor rural fica autorizado a separar uma parte do seu imóvel para dar como garantia ao pedir um empréstimo. Trata-se, portanto, de uma proposta de criação de instrumento de mercado para viabilizar recursos para o crédito rural à semelhança da Cédula de Produto Rural (CPR) criada na década de 1990.

Os argumentos favoráveis à criação da CIR apontam que ela dará celeridade e aumentará os créditos disponíveis para o financiamento da produção agrícola brasileira, ao mesmo tempo em que não coloca toda a propriedade rural como garantia da operação de empréstimo, que muitas vezes equivale a um valor bem inferior àquele da propriedade. Sem discordar destes argumentos, é preciso atentar para as consequências da criação de um instrumento de crédito rural passível de ser negociado na bolsa de valores.

O crédito e as finanças não são novidade na agricultura. Basta lembrar que os mercados de futuro agrícolas datam ainda do século XIX na Inglaterra e nos Estados Unidos e o próprio funcionamento do sistema agroalimentar é marcado pelas transações comerciais internacionais desde a sua gênese nos anos 1870. Entretanto, a orientação da desregulamentação que caracteriza o neoliberalismo abriu os mercados financeiros agrícolas para agentes externos ao setor – trazendo com isso a lógica da especulação sobre as commodities e, mais recentemente, sobre o próprio ativo terra.

Quando não regulada, a negociação de títulos como a CIR nas bolsas de valores pode fomentar a criação de um mercado sobre os títulos (as frações das terras) descolado dos seus ativos reais. Diversos produtos e instrumentos financeiros agrícolas já funcionam dessa forma, permitindo que investidores ganhem com a oscilação dos preços dos alimentos e das terras, sem assumir os riscos da produção agrícola propriamente dita. No que tange ao mercado de futuro agrícola, enquanto os investidores financeiros respondiam por 25% dos participantes, em 2010 já abarcavam a totalidade do mercado.

Regulações do número de contratos por agente e a limitação das transações a investidores propriamente agrícolas – excluindo-se, portanto, a participação de investidores de outros setores, com interesses predominantemente financeiros nas transações – foram sendo desmontadas nas últimas décadas em diversos países do mundo. Ao mesmo tempo, vem avançando a chamada financeirização do sistema agroindustrial, no qual atores, mercados e motivos financeiros têm cada vez mais importância na organização, na estrutura e nas relações entre a terra e a produção de alimentos.

A expansão do mercado de securitizações está prevista no art. 23 do PL, que atesta que “a CIR poderá contar com garantir de terceiro, podendo esse ser instituição financeira ou seguradora”.

Os efeitos sociais dessas transformações vão desde a inflação de alimentos, e a fome a ela associada, até degradações ambientais e violações de direitos trabalhistas e sociais. Lembramos ainda que a expansão do mercado de terras ou das formas de negociação da terra estão também muitas vezes conectadas a investidores interessados na aquisição de grandes propriedades de terras, para a produção de biocombustíveis, por exemplo, muitos dos quais, estrangeiros. Entra aí uma outra preocupação, que diz respeito à estrangeirização das terras brasileiras. O PLS 132/2017 permite que investidores estrangeiros comprem e negociem a CIR, tornando-se, portanto, mais uma via para a entrada de estrangeiros, pessoas físicas e jurídicas, em nosso mercado de terras.

A criação do instrumento da CIR faz uso de argumentos em favor da produção, ao mesmo tempo em que abre as portas para a entrada de lógicas e agentes com interesses imperativos outros. Os resultados poderão se ver dessintonizados com os interesses efetivamente produtivos e nacionais.

 

*Economista (UFMG), mestre em sociologia (UFRJ) e doutoranda em Ciências Sociais, Desenvolvimento e Agricultura (UFRRJ)

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