Bruno Elias: Constituinte e reforma política popular

Em todo o Brasil, movimentos sociais, centrais sindicais e partidos de esquerda estão organizando um plebiscito popular por uma Constituinte do sistema político. Este plebiscito popular deve ocorrer na primeira…

Em todo o Brasil, movimentos sociais, centrais sindicais e partidos de esquerda estão organizando um plebiscito popular por uma Constituinte do sistema político. Este plebiscito popular deve ocorrer na primeira semana de setembro de 2014. Até lá, serão articuladas manifestações de rua, atividades de formação, comitês municipais e comitês nos locais de trabalho e estudo.

A organização do plebiscito popular atende a dois propósitos combinados. Por um lado, reforça a luta por uma Constituinte, ou seja, por um método capaz de resultar numa reforma política que atenda aos interesses populares. Ao mesmo tempo, a organização do plebiscito serve para que difundamos, junto ao povo, propostas concretas para a reforma do sistema político.

As propostas fundamentais, que garantem o caráter popular da reforma que defendemos, são as seguintes: 1) acabar com financiamento empresarial das campanhas eleitorais e da atividade política em geral, 2) ampliar os instrumentos e os espaços de controle social e de participação direta da população, 3) fortalecer a representatividade democrática do sistema eleitoral, dos partidos e dos setores populares na política. A seguir falamos mais detalhadamente de cada uma destas propostas.

Fim do financiamento empresarial da política

O financiamento privado das campanhas eleitorais e da atividade político-partidária é o principal problema do nosso sistema político. Isto porque este financiamento subverte o princípio fundamental da democracia eleitoral, a saber, a igualdade entre cada cidadão e cada cidadã. Pois de nada adianta sermos todos iguais na hora de votar, se alguns têm os meios para legalmente comprar votos e comprar mandatos.

O financiamento empresarial é um dos instrumentos através dos quais os capitalistas impedem que a classe trabalhadora, apesar de ser em maior número, eleja a maioria dos parlamentares e a maioria dos governantes. Portanto, uma reforma popular deve começar proibindo totalmente, criminalizando, o financiamento empresarial da política.

O financiamento empresarial da política traz, como subproduto, a corrupção. A corrupção de candidatos, a corrupção de eleitores e a corrupção dos eleitos. Em geral, quem recebeu dinheiro para fazer campanha, devolverá o valor recebido com juros e correção monetária. Às vezes a devolução se dará por caminhos legais, como a aprovação ou a execução de projetos e de políticas públicas de interesse das empresas doadoras. E às vezes a devolução se dará por caminhos ilegais, naquilo que é chamado usualmente de corrupção (quando na verdade, o conjunto do sistema eleitoral baseado no financiamento empresarial é corrupto).

Portanto, quem defende o fim da corrupção, quem defende o interesse público, quem é contra a privatização da política, deve defender o fim do financiamento empresarial.

Hoje, a possibilidade de êxito nas campanhas eleitorais é cada vez mais dependente do poder econômico. Os custos de campanha, por sua vez, são cada vez mais altos. Isto faz com que grande parte do financiamento privado das campanhas eleitorais seja feito por grandes empreiteiras, bancos e corporações. Ou seja, as campanhas eleitorais estão sob controle de um oligopólio, um grupo de reduzidas grandes empresas. O que quer dizer que o financiamento empresarial introduz uma desigualdade entre os capitalistas e o resto da população, mas também introduz uma desigualdade interna a própria classe dos capitalistas.

Para termos campanhas eleitorais que sejam decididas pela luta política, e não pelo acesso a recursos financeiros; para termos campanhas eleitorais baratas e não o que vemos hoje, a saber, a transformação da democracia em uma operação comercial, precisamos acabar com o financiamento empresarial.

Como financiar os gastos de uma campanha eleitoral, se os empresários forem proibidos de contribuir? Há duas alternativas fundamentais: ou o financiamento público ou o financiamento privado de pessoas físicas.

O financiamento privado de pessoas físicas é, provavelmente, o mais apropriado para financiar o cotidiano dos partidos políticos. Da mesma forma como somos contrários a usar dinheiro público para financiar igrejas, também somos contrários a usar dinheiro público para financiar partidos políticos.

As campanhas eleitorais, contudo, são uma instituição pública, através da qual a população escolhe quem governará o país. Neste sentido, o mais adequado é que para as campanhas eleitorais haja financiamento público, que pode ser exclusivo ou pode ser combinado com financiamento privado de pessoas físicas, desde que este financiamento privado seja limitado a pequenas quantias, ou seja, valores que sejam relativamente acessíveis a todos que desejem contribuir.

Tendo em conta que grande parte das campanhas eleitorais é feita através de radiodifusão e teledifusão, que por sua vez são concessões públicas, é perfeitamente possível fazer as campanhas com custos muito mais baratos do que os de hoje, aposentando estes personagens deletérios conhecidos como marqueteiros e restabelecendo o primado do discurso e da criatividade política.

O que nos remete para um outro elemento que deve estar presente na reforma política: a necessidade de aprovar uma Lei da Mídia Democrática, como parte fundamental de uma reforma política popular.

Faz parte desta Lei da Mídia Democrática o cumprimento do preceito constitucional segundo o qual a comunicação não pode ser objeto de monopólio nem, portanto, oligopólio como é hoje. No mesmo sentido, é preciso garantir que políticos não recebam concessões públicas de meios de comunicação. Uma regulação democrática dos meios de comunicação, que assegure a liberdade de expressão, a diversidade e a pluralidade, deve apontar para medidas fundamentais de democratização política, como o fim da propriedade cruzada, a participação popular e o fortalecimento dos sistemas público e estatal de comunicação.

Participação popular e democracia direta

A manifestação da soberania popular não pode nem deve se limitar aos períodos eleitorais. Ela precisa se expressar em eleições democráticas e também através de mecanismos e instituições de participação direta da população.

Desde a Constituição de 1988, apenas duas consultas populares foram realizadas: o plebiscito sobre o sistema e a forma de governo, em 1993, e o referendo sobre o desarmamento, em 2005.

Embora contemos com alguns exemplos de leis de iniciativa popular, este mecanismo hoje não pode ser utilizado para fazer propostas de emenda constitucional. Além disso, para apresentar uma Lei de Iniciativa Popular, são necessárias pelo menos um milhão e quinhentas mil assinaturas (1% do eleitorado nacional), a serem divididas entre pelo menos cinco estados e com no mínimo 0,3% dos eleitores em cada um.

Uma nova regulamentação destes mecanismos de democracia direta deve simplificar os processos de convocação de plebiscitos, referendos e apresentação de leis de iniciativa popular. Além do Congresso Nacional, a convocação também poderia ser realizada por iniciativa direta da população e os projetos de iniciativa popular passariam a ter tramitação prioritária no Congresso Nacional.

Nos últimos anos, a participação da sociedade também se expandiu por meio de conferências, conselhos, ouvidorias, audiências, consultas públicas e mais recentemente, canais de participação em ambientes virtuais. É preciso buscar maneiras de assegurar o caráter deliberativo desse tipo de mecanismos, a efetividade de suas ações e a incidência em áreas estratégicas do Estado que ainda não contam com instrumentos de participação da sociedade, como a política econômica, a política de desenvolvimento, a política externa, a Defesa etc.

A ampliação desses processos participativos inclui ainda o controle social no ciclo orçamentário, contemplando iniciativas como o orçamento participativo; a realização de plebiscitos e referendos em âmbito local; e a possibilidade de inclusão de novos institutos, como a revogação de mandatos e a participação popular na escolha de juízes e na democratização do poder judiciário.

Sistema eleitoral

O modelo eleitoral brasileiro é baseado, supostamente, no sistema proporcional, através do qual se faz a eleição de vereadores, deputados estaduais e federais. Ou seja, o número de parlamentares eleitos pelo partido equivale a porcentagem dos votos válidos recebidos.

Já para os cargos executivos (prefeitos, governadores e presidente) e também para a eleição ao Senado, o sistema eleitoral é majoritário, vencendo a eleição o mais votado dentre os candidatos.

Alguns partidos e setores conservadores defendem que as eleições para vereador e deputado também se realizem pelo sistema majoritário, como ocorre geralmente no chamado voto distrital.

O eleitorado seria dividido em seções eleitorais menores que as atuais e os eleitos seriam aqueles mais votados em cada um desses distritos. Consideramos esta proposta do voto distrital um retrocesso, que teria como um de seus efeitos práticos criar a figura do vereador federal. Ou seja: um sistema eleitoral que estimula a predominância dos temas paroquiais, exatamente num momento em que o Brasil necessita de debate dos grandes temas nacionais.

O mais grave, contudo, é que o sistema distrital tende a destruir as minorias, tende a destruir a pluralidade. Um exemplo esquemático (e, portanto, exagerado) deixará isto claro: no sistema proporcional, se um partido tem 40% dos votos em todo o país, ele vai ter mais ou menos 40% dos eleitos. Já no sistema distrital, se um partido tem 40% dos votos e os demais têm menos que 40% dos votos, o partido que teve maioria simples pode ficar com 100% dos eleitos.

Agora, atenção: somos contra o sistema distrital, em suas várias versões. Mas isto não quer dizer que o atual sistema brasileiro seja bom. Na verdade, nosso sistema parece proporcional, mas não é verdadeiramente proporcional.

O fato é que o sistema eleitoral brasileiro enfrenta graves distorções de representatividade. Em 1977, a ditadura militar impôs o Pacote de Abril, que incluía entre outras medidas, a adoção da eleição indireta de senadores “biônicos” para parte do Senado e a ampliação das bancadas que representavam os estados menos populosos da federação. Ou seja, nos estados com menos eleitores, o voto de cada eleitor vale relativamente mais do que vale o voto de quem mora nos estados com mais eleitores.

Na Constituinte de 1987/1988 e ao longo dos anos que se seguiram, os principais traços deste modelo não seriam alterados.

As distorções na representação popular devem ser corrigidas com o estabelecimento do princípio da proporcionalidade direta – “um cidadão, um voto” – na composição da Câmara dos Deputados, garantindo a legítima representação dos Estados de acordo com a população e eleitorado. Ao mesmo tempo, é preciso retomar o debate sobre o fim do Senado e a alternativa do sistema unicameral.

Herança do império e reduto das oligarquias regionais desde suas origens, o Senado acentua as distorções no princípio da proporcionalidade. Isto não seria tão grave, se o Senado se limitasse a ser uma casa de representação dos Estados e de votação dos assuntos federativos.

Mas o Senado também dispõe de iniciativa legislativa e também cumpre o papel de câmara revisora daquilo que a Câmara dos Deputados decide, o que quer dizer que a minoria do eleitorado predomina sobre a maioria do eleitorado. Pois cada estado brasileiro tem, independente do seu eleitorado, três senadores.

Além disso, no Senado existe o mandato de oito anos e a eleição de suplentes sem o voto popular. Por tudo isto,  justifica-se discutir a fundo a possibilidade do Brasil adotar a unicameralidade, acabando com o Senado.

Outra característica do nosso sistema eleitoral é o voto em lista aberta. Neste sistema, o eleitor pode votar num partido ou numa candidatura individual. Mas, como sabemos, o eleitor é estimulado a votar numa pessoa, numa determinada candidatura. Isto em dois efeitos, um bastante visível e outro quase invisível.

O visível é o estímulo ao personalismo em detrimento dos partidos, dos programas. O invisível é que o voto da maioria dos eleitores acaba contribuindo para eleger pessoas em que o eleitor não votou. Pois embora o eleitor vote numa pessoa, este voto é somado aos demais votos dados a pessoas de um mesmo partido, e a votação total de todas as candidaturas de um determinado partido é que define o número de vagas que este partido conquista nas eleições.

O único jeito de combinar o máximo de voto programático com o máximo de segurança do eleitor acerca de quem ele vai eleger é o voto em lista pré-ordenada (que pode ser totalmente fechada ou parcialmente fechada, caso em que o eleitor pode alterar a ordem das candidaturas indicadas pelo seu Partido de preferência).

O voto em lista tem uma outra vantagem: permite superar a sub-representação de determinados setores sociais, como é o caso das mulheres, da juventude, dos idosos, das negras e negros, dos indígenas, da população LGBT, das pessoas com deficiência. Pois se pode exigir que as listas de candidaturas partidárias não apenas contenham determinado percentual mínimo destes segmentos, mas também que as listas de pessoas eleitas respeitem estes percentuais mínimos.

A proposta de lista pré-ordenada, com votação na lista de candidatos organizada pelo partido, permite uma disputa mais centrada nas propostas e no fortalecimento dos partidos programáticos. Para tanto, as listas partidárias devem ser definidas em processos democráticos e transparentes, que observem a alternância e paridade entre mulheres e homens e critérios de inclusão dos demais setores sub-representados.

Por sua vez, o fim das coligações nas eleições proporcionais reduziria as alianças políticas de ocasião e a distorção da vontade do eleitor, que acaba contribuindo sem querer para eleger parlamentares de outros partidos. Em substituição a atual possibilidade de coligações sem princípio, adotaríamos o mecanismo das federações partidárias, de caráter mais programático e permanente ao longo da legislatura.

Aprofundar as mudanças

A reforma do sistema político é um debate de interesse de todos e não deve ficar restrito aos políticos ou aos poderes constituídos. Para se tornar um movimento de amplos setores da sociedade, a mobilização pela Constituinte deve se conectar com a realidade dos setores populares, da juventude, da tradicional e da nova classe trabalhadora.

A Constituinte é ao mesmo tempo, instrumento para viabilizar e parte ela mesma de um programa mais amplo de reformas estruturais, como a reforma agrária, urbana, tributária, da segurança e a democratização da mídia. Em um ano de lutas sociais e de eleições nacionais, a mobilização por mudanças do sistema político e por reformas democráticas e populares pode ser decisiva “para o Brasil seguir mudando”.

Bruno Elias é secretário nacional de movimentos populares do PT.

* Publicado originalmente no www.pagina13.org.br. Texto escrito com a contribuição de outros dirigentes e buscando refletir as posições da Articulação de Esquerda, tendência interna do PT, a respeito da reforma política.

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