Inocêncio Uchôa: este golpe é pior que o de 1964

Advogado cearense foi brutalmente torturado na ditadura e, agora, se levanta contra o afastamento de Dilma. “Esse golpe é uma farsa completa”, diz

“Estou vivendo o segundo golpe da minha vida”, afirma o advogado cearense Inocêncio Uchôa, 71 anos, após assistir ao fim da sessão do impeachment contra a presidenta eleita Dilma Rousseff na quarta (31), em sessão no Senado.

Uchôa, que dedicou boa parte da vida pela democracia e por ampliação de direitos sociais, se apronta em afirmar que o golpe atual tem um conjunto de fatores que o torna pior para boa parcela da população em comparação ao feito pelos militares 52 anos atrás.

“Golpe é golpe. Ambos produzem uma profunda violência contra os direitos democráticos. Nos resultados práticos para a maioria da população, porém, esse pode ser mais deletério do que o de 1964”, garante.

Em entrevista à Agência PT, feita em seu apartamento em Fortaleza, ele explica os motivos que o levam a essa conclusão.

Para ele, haverá uma grande desvalorização do salário mínimo e a redução dos direitos trabalhistas; o alinhamento da política externa brasileira com a norte-americana (em detrimentos a blocos como o BRICS); a redução ou o corte completo dos programas sociais atuais; e, sobretudo, a entrega de boa parte do pré sal a investidores estrangeiros.

Parte dessas medidas está, inclusive, explicitada no programa golpista “Ponte para o futuro”.

De acordo com o advogado, os governos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma deram ao Brasil um inédito avanço social e protagonismo internacional. Tudo, porém, poderá se perder.

Ele co-organizou o livro “O Ceará e a resistência ao golpe de 2016” (Projeto Editorial Praxis). A publicação traz 35 artigos assinados por personalidades cearenses contra o golpe de estado em curso no Brasil.

Primeiro golpe

A sua vida dentro na política começou em 1965. Ele veio de Aracati, no interior do Ceará (onde fica a praia de Canoa Quebrada), para estudar Direito na Universidade Federal do Ceará.

Logo se tornou presidente do Centro Acadêmico e passou a lutar pela restituição da União Nacional dos Estudantes (UNE), perseguida pelo governo militar. Com a instituição do AI-5, em dezembro de 1968, a sua vida se transformou completamente.

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Uchôa, a esposa Angela e o filho Marcelo (foto: arquivo familiar)

A perseguição do governo militar a qualquer atitude tida como de esquerda se intensificou de forma sem precedentes. Ele teve que ir para a Zona da Mata pernambucana, onde continuou a se opor ao regime antidemocrático.

Porém, acabou preso após ter participado do Congresso de Ibiúna, com outros 70 estudantes, 10 deles cearenses. Uchôa sofreu severas torturas nos porões da ditadura.

“As torturas eram bárbaras: espancamentos, choques elétricos. Independentemente da sua participação de esquerda, se estava na luta armada ou não, a tortura era comum a todos. Muitos espancamentos, muitos choques elétricos e muitas humilhações. A tortura não é uma sessão, é um processo, é um período”, relembra.

“Na hora da tortura, eu olhava para os torturadores e não acreditava que aqueles caras tinham a coragem de praticar tantas barbaridades. É tão inacreditável que o ser humano seja capaz de praticar tantas barbaridades que você não acredita que aquilo esteja acontecendo”.

Posto em liberdade, teve de se mudar para o Rio de Janeiro. A justiça militar, porém, logo o condenou de novo e precisou viver na clandestinidade. Só pôde voltar à sua terra em 1979, com a promulgação da lei de Anistia.

Na volta a Fortaleza, passou a atuar a favor dos trabalhadores, das organizações sindicais e na luta pela terra.

Ao todo, a ditadura lhe tirou 11 anos de liberdade. O seu grande desalento: “Os meus dois filhos (Pablo e Marcelo) não puderam nascer em sua terra”.

Porta retratos com os filhos Marcelo e Pablo

Porta retratos com os filhos Marcelo e Pablo

Golpe de 2016

De acordo com o advogado, os governos de Lula e, depois, de Dilma, foram os primeiros a tirar do papel as garantias sociais asseguradas pela Constituição de 1988.

Entre os programas que destaca estão o Bolsa Família, o Minha Casa Minha Vida, o Luz para Todos, a valorização sem precedentes do salário mínimo. Na área de educação, exalta o Prouni,o Fies, o Pronatec o Ciências Sem Fronteiras e a criação de universidades federais.

Ele afirma que houve uma revolução social por todo o País e, sobretudo, no Nordeste.

“Atualmente, vivemos cinco anos de seca no Ceará, uma das maiores da história. Não há um cidadão na rua p

edindo esmola por causa da seca. Antes de Lula, uma seca de um ano era o que bastava para as pessoas que não tinham nenhuma proteção social saírem às ruas, aos órgãos públicos, para buscar um prato de farinha com rapadura”, explica.

“Hoje, no interior, não há mais aquela migração massiva à capital ou a São Paulo. As pessoas estão mantidas no interior, o interior tem uma pujança. O Ceará tinha só uma faculdade federal. Hoje tem quatro. É fruto dos programas sociais que vão acabar com o governo golpista, de acordo com o próprio governo golpista”.

A desvalorização do salário mínimo que deverá ser produzida por Temer é uma das consequências mais nefastas do golpe, de acordo com o advogado.

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“Com Lula e Dilma, o salário mínimo era aumentado anualmente pela inflação e pelo crescimento do País, caso houvesse crescimento. Essa medida permitiu que em 13 anos o mínimo tivesse um ganho real de 70%. O salário saiu de um patamar de U$ 70, ou cerca de R$ 250 em dinheiro de hoje, para os atuais R$ 880”.

“É algo concreto que vai acabar. Não sou eu que estou dizendo. É a própria ‘Ponte para o futuro’ que diz”.

Para Uchôa, está evidente também que os golpistas pretendem enfraquecer as políticas externas independentes do Brasil, como a participação no bloco econômico dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), iniciadas por Lula. O caminho de Temer deverá ser o alinhamento completo à política econômica tradicional dos Estados Unidos.

Sem contar, explica ele, que o impedimento de Dilma poderá trazer consequências a boa parte do mundo.

“O Brasil é um país estratégico no planeta. Um golpe no Brasil evidentemente influi no processo da Argentina, Peru, Colômbia, Venezuela, Equador, Chile, Bolívia, Paraguai, Uruguai. Influi, ainda, nos processos políticos da África e da própria Ásia”.

Haverá, também, a redução ou o corte completo de programas sociais iniciados por Lula e Dilma

“Eles dizem que não cabe no orçamento. Há até uma proposta do governo Temer de congelar durante 20 anos os repasses para os estados. É brincadeira”.

O golpe maior

O advogado explica que um dos pontos-chave do processo de afastamento de Dilma foi a questão do pré sal, uma conquista histórica realizada durante o governo Lula.

“O pré sal não foi uma descoberta aleatória. Ele foi arrancada de dentro do chão. O Brasil sabia que existia o pré sal, foi atrás, gastou muito dinheiro com pesquisa e prospecção e conseguiu extrair o tesouro, que talvez seja a maior riqueza explorável do planeta”.

Porém, conta Uchôa, a descoberta despertou o desejo internacional. Para eles, a sanha internacional sobre o pré sal é um dos grandes fatos que geraram o impeachment.

“Os caras destroem um país como o Iraque por causa de um pouco de petróleo. No Brasil, viram que poderiam conseguir por um golpe de estado que permitisse que o governo redirecionasse a política de maneira que a riqueza possa chegar às mãos deles com facilidade. É inacreditável”.

“É esse conjunto de situações que me dão a certeza de que os resultados deste golpe serão muito piores que o de 1964”, afirma o homem que se posicionou e enfrentou dois golpes de perto.

A farsa do golpe

Como advogado, Uchôa garante que o golpe é “uma grande farsa técnica e política”.

“Politicamente, porque Lula, Dilma e os partidos aliados, como PCdoB e PDT, conseguiram um processo de desenvolvimento econômico nos últimos 13 anos absolutamente indiscutível. Só para dar um exemplo, o Brasil saiu de devedor para credor. O Brasil virou outro mundo”.

(foto: divulgação)

(foto: divulgação)

De acordo com Uchôa, na área técnica as justificativas são ainda piores.

“Juridicamente, é uma farsa completa. A Dilma não cometeu nenhum crime, muito menos doloso. Não se afasta a presidenta da sétima maior economia do mundo sem um crime doloso muito grave. Não basta ter maioria (parlamentar). Precisa ter maioria e ser justo. Não se pode tirar 54 milhões de votos sem um crime grave”.

“A Dilma não roubou, a Dilma não usurpou, a Dilma não botou dinheiro na Suíça, a Dilma não desviou dinheiro, a Dilma não prevaricou. É um golpe, sim. Não podemos nos conformar com isso”, afirma.

Para ele, o PT deve levar a questão ao Supremo Tribunal Federal (STF). Ao seu ver, a justificativa principal é que o golpe surgiu de um ato fraudulento do então presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ).

“O golpe nasceu de uma fraude. O ato de Cunha foi comprovadamente por vingança. Ele, então, é nulo pela origem. Sem contar que dentro do processo houve vários ilícitos. Há muitas nulidades. Repito: o golpe é uma farsa”.

Por Bruno Hoffmann, de Fortaleza, para a Agência PT de Notícias

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