Leão e Nozaki: A política de gás no Brasil – trajetória recente e desafios atuais

A estrutura e as mudanças setoriais dessa cadeia produtiva, as condições do mercado e as mudanças recentes na política brasileira para o setor

Terminal de Regaseificação de Pecém — Primeiro terminal flexível de regaseificação de gás natural liquefeito (GNL) no Brasil, tem capacidade de transferir até 7 milhões de m³/dia de gás natural para o Gasoduto Guamaré- Pecém (Gasfor). Atende principalmente as termelétricas Ceará e Fortaleza.

O gás natural pode ser considerado um combustível fóssil mais nobre do que outros hidrocarbonetos em termos ambientais, dado que emite menos poluente quando de sua utilização, trata-se, portanto, de um combustível estratégico e que pode atuar como “ponte” para a passagem de um projeto de transição da matriz energética do petróleo em direção a outras fontes alternativas e renováveis. Entretanto, sua participação na matriz energética brasileira responde ainda por pouco mais de 10% da oferta primária de energia no Brasil, a média mundial é de cerca de 25%.

Ainda assim o mercado brasileiro é bastante robusto: são 3.050 clientes industriais, 36.122 clientes comerciais, 26 distribuidoras (a Petrobras tem participação em pelo menos 20 delas), 440 municípios e 3.060.213 residências atendidas com 53.93 milhões de metros cúbicos/dia de gás natural consumidos das distribuidoras.

Tudo isso sem considerar o potencial de expansão desse mercado, pois o gás natural canalizado está presente em apenas 470 das 5570 cidades do país e atende 3 milhões de residências num total de 68 milhões de domicílios brasileiros, onde o gás natural não chega se recorre ao uso do gás de botijão (GLP), os dados são da Associação Brasileira das Empresas Distribuidoras de Gás Canalizado (Nozaki, 2017).

A fim de aprofundar o diagnóstico sobre a trajetória recente e os desafios atuais para a política de gás, o presente artigo busca analisar (i) a estrutura e as mudanças setoriais dessa cadeia produtiva à luz da geopolítica e da geoeconomia do setor, que vem passando por intensas transformações no último período (seção 1); (ii) além disso, busca-se problematizar as condições específicas do mercado de gás no Brasil e seu papel no interior da matriz energética nacional (seção 2) para, por fim, analisar as mudanças recentes na política brasileira para o setor de gás, seus limites e seus desafios (seção 3).

Mudanças setoriais e geopolíticas: o papel estratégico do gás natural na transição energética

No período recente, o setor de gás natural tem passado por modificações estruturais importantes tanto na dimensão geopolítica quanto no âmbito setorial. Tais mudanças têm ocorrido em razão, por exemplo, das crescentes pressões para uma transição energética em direção a uma matriz mais limpa, bem como das inovações produtivas que resultaram numa maior flexibilidade para o transporte e distribuição do gás.

O gás natural tem assumido assim um papel crescentemente importante na matriz energética global e brasileira. Nesta primeira seção busca-se examinar de forma mais detalhada essas transformações que tem permitido ao gás natural se tornar uma fonte energética de maior relevância e, vale destacar, cada vez mais autônoma em relação ao petróleo.

O papel importante do gás natural nos processos de transição energética para matrizes mais limpas se deve a duas grandes razões: (i) o gás natural é uma fonte consideravelmente mais limpa do que parte de seus substitutos, (ii) além disso, entre os principais países demandantes de energia, já existe uma infraestrutura consolidada tanto em termos logísticos de escoamento e distribuição do produto, como de utilização para os mais diferentes segmentos. Vejamos cada um desses pontos.

Em primeiro lugar, a queima de gás gera menos emissões, principalmente de dióxido de carbono, frente aos demais hidrocarbonetos, “pois a molécula de metano — elemento químico que compõe o gás natural — gera menos emissão de carbono por unidade de energia quando oxidada, uma vez que apresenta a maior relação de hidrogênio/carbono dentre todos os hidrocarbonetos” (ALMEIDA; FERRARO, 2013, p. 8). Ademais, os mesmos autores destacam que o gás natural possui uma baixa concentração de enxofre e óxidos de nitrogênio — que geram, respectivamente, a chuva ácida e a produção de ozônio superficial — quando comparado com outros combustíveis refinados do petróleo.

Em segundo lugar, de acordo com a maior parte das avaliações, o gás natural deve substituir crescentemente o carvão na geração de eletricidade e ampliar sua participação no mercado de transportes automotores. Ainda que não existam, neste momento, tecnologias que viabilizem a utilização do gás em grande escala na movimentação de veículos terrestres, embarcações e aeronaves, a ampliação de sua utilização ocorre de forma indireta através da expansão da frota de veículos elétricos e híbridos por meio da demanda de eletricidade.

Além dessas possibilidades, já existem em diversos segmentos a capacidade de utilização do gás natural como insumo energético em substituição a outras fontes de energia. Na indústria, por exemplo, o gás é considerado um insumo de combustão limpa e mais adequado em processos industriais que exigem a queima em contato direto com o produto final, como na indústria de vidro e cerâmica. No consumo residencial, entre outros usos, o gás natural se mostra uma opção mais econômica para sistemas de climatização, gerando uma redução de até 99% no consumo de energia elétrica (ALMEIDA; FERRARO, 2013).

No caso brasileiro, há um aspecto adicional que tem afetado positivamente a demanda por gás nacional que é o déficit elevado de fertilizantes para a produção agrícola. O estudo de Santos (2016), por exemplo, aponta a existência de uma crescente utilização do uso de fertilizantes na cadeia de valor de biocombustíveis e, como o gás natural é um dos insumos da produção de fertilizantes, com efeito, abre-se um mercado importante para utilização do gás.

O Brasil é um importante produtor de biocombustíveis líquidos em nível mundial. Para as próximas décadas, as projeções são de contínuo crescimento da oferta doméstica tanto de etanol, proveniente da cana de açúcar, quanto de biodiesel, a partir da soja. Para alcançar tais níveis de produção, as culturas de cana de açúcar e de soja (culturas energéticas) tendem a demandar o uso de fertilizantes, como a ureia, e a pressionar o mercado nacional, contribuindo significativamente para o aumento das importações. A principal matéria-prima para a produção de ureia é o gás natural, para o qual o Brasil atualmente também possui perfil importador. Portanto, a ampliação da oferta de energia via biocombustíveis tende a ocorrer por meio de aumento do déficit comercial quer seja de ureia ou de gás natural. (…) Isto torna relevante a análise do impacto da expansão das culturas energéticas no balanço energético nacional e da priorização de uso do gás natural produzido domesticamente (SANTOS, 2016, p.1).

Somado a essas questões setoriais, o gás natural liquefeito (GNL) tem proporcionado uma mudança estrutural importante ao flexibilizar e integrar o processo de transporte e distribuição de gás e permitido uma forte expansão da sua utilização. O processo de liquefação do gás permite que o seu transporte seja realizado por navios e tanques ao invés de dutos, o que facilita a expansão da sua comercialização por vias marítimas e terrestres.

O GNL é a fonte de energia que mais tem crescido no mundo desde os anos 2000, a uma taxa de 7% ao ano. Além disso, desde 2015, os seus preços têm caído em função da: (i) queda abrupta do preço do petróleo, reduzindo o valor do gás associado a este; (ii) estagnação da demanda europeia; (iii) a expansão abaixo do esperado da demanda chinesa e (iv) um incremento da oferta a partir do acelerado crescimento de unidades de liquefação e regaseificação (CLARA, 2015).

Por um lado, há atualmente 38 plantas de liquefação de gás natural no mundo em 21 diferentes países, boa parte concentradas no Oriente Médio (CLARA, 2015). Por outro lado, observa-se também uma acelerada expansão das unidades de recebimento do GNL, bem como de regaseificação em todo mundo.

As unidades criadas ou expandidas de recebimento de GNL cresceram rapidamente entre 2004 e 2014. Enquanto em 2004 foram criados e/ou expandidos apenas dois terminais, entre 2011 e 2014 anualmente foram construídos e/ou expandidos entre seis a doze terminais, embora espera-se uma queda após 2017 (ver Figura 1).

Figura 1 — Terminais de recebimento de GNL em terra e flutuantes (1980–2020)

Fonte: IGU (2016)

Ademais, estudos recentes, como o de Flor (2016), apontam para a existência de um número já relevante de unidades de regaseificação na Europa, com uma perspectiva de construção de novas unidades, principalmente na Itália e no Leste Europeu. Nessas duas regiões, estão planejadas a construção de mais dezesseis terminais de regaseificação.

De acordo com um estudo da CNI, em 2014, a capacidade global de regaseificação já totaliza mais de 724 milhões de toneladas por ano, distribuídas em 101 terminais localizados em 29 países diferentes. Cerca de 60% de toda a capacidade está concentrada em somente três regiões: Estados Unidos, Coreia do Sul e Japão. Embora já exista uma ampla capacidade de regaseificação no mundo, a sua elevada concentração indica que há uma tendência de crescimento dos terminais no médio prazo.

Com efeito, essas informações sugerem que há a criação de um mercado global de GNL cada vez mais dinâmico com fluxos crescentes de comércio por conta do rápido crescimento da oferta e da demanda (DELGADO et al., 2017).

Concomitantemente à flexibilização trazida pela expansão do GNL, a ascensão do shale gas (gás de xisto) trouxe modificações importantes no mercado de gás natural já no início do século 21. Em primeiro lugar, porque os Estados Unidos, um dos grandes importadores de energia do mundo, tornou-se o grande líder na produção deste tipo de gás, passando a atender boa parte da sua demanda interna. Entre 2005 e 2010, por exemplo, a produção americana do shale gas cresceu 45% ao ano, chegando ao patamar 141 bilhões de metros cúbicos. Em segundo lugar, Lage et al. (2013) lembra que a própria China, outra grande demandante global de energia, deve acelerar sua exploração de shale gas, uma vez que é uma das maiores detentoras de reservas deste tipo de gás no mundo. A fim de atingir as elevadas metas de redução de emissões de gases do efeito estufa, a China já investiu bilhões na aquisição de participações em empresas americanas produtoras de shale gas para conhecer as técnicas de produção utilizadas nos Estados Unidos.

O crescimento do shale gas e do GNL aceleraram os fluxos de comércio intra e interregiões e permitiram uma mudança na formação do preço do gás.

Em relação ao primeiro aspecto, as mudanças apontadas anteriormente num cenário de expansão da demanda e oferta global têm intensificado o comércio do gás no mundo. Um relatório da Shell prevê crescimento do mercado mundial em 2017 e 2018 e crescimento de 50% até 2020, permanecendo a Índia e a China como os principais importadores. Como um todo as projeções indicam que o mercado asiático deve se ampliar em 70% até 2030 (DELGADO et al., 2017).

O mercado também tem sofrido transformações nos tipos de contratos de comercialização dominantes, com redução daqueles mais longos e com preços associados ao petróleo, típicos da fase de financiamento da construção dos gasodutos, por contratos mais curtos e com preços determinados no próprio mercado de gás natural. Com isso, aumenta-se o poder de barganha dos importadores que, além de alterar seus fornecedores, adquire maior capacidade para negociar preços. O trabalho de Delgado et al. (2017) destaca justamente que os investimentos realizados pelos dois países asiáticos em terminais de regaseificação visa se aproveitar desse cenário. Mesmo quando a compra do gás por meio dos gasodutos está mais barata, a China tem optado pela aquisição por meio de GNL. A Índia tem feito um movimento parecido, fato corroborado pelos elevados gastos que o país tem feito na construção dos terminais.

A oferta tem passado por um incremento que deve se intensificar no futuro por conta da produção da Austrália e dos Estados Unidos. A Ásia, por exemplo, deve ser crescentemente atendida principalmente pela produção da Austrália, levando-se em conta os atuais trens de liquefação existentes. Os Estados Unidos, por sua vez, devem se tornar país exportador líquido no final dessa década atendendo ao continente americano, principalmente México e Canadá por meio de gasodutos.

Em relação ao segundo aspecto, devido à flexibilização dos mecanismos de transporte, os mercados se regionalizaram em preços e com a possibilidade de redirecionamento de cargas. Os mercados internacionais apresentam três áreas de precificação distintas para o GNL: EUA, Europa e Ásia, com os referenciais Henry Hub, NBP e JKM.

Os preços do GNL na Ásia, que já foram muito elevados com o crescimento da demanda decorrente da paralisação das térmicas nucleares japonesas, têm convergido para níveis mais próximos do NBP e Henry Hub. Rio de Janeiro, no Brasil e Bahia Blanca, na Argentina, são praças com preços superiores devido aos custos de transporte, enquanto as praças nos EUA apresentam preços bem menores devido à concorrência do gás por gasoduto e do excedente de produção em função da crescente exploração do gás não convencional (shale gas).

Gráfico 1 — Comportamento dos preços do gás natural nos Estados Unidos e do petróleo tipo WTI (1999–2012; Set. 1999=100)

Fonte: LAGE et al. (2013)

O próprio trabalho de Lage et al. (2013) identifica que — no caso dos Estados Unidos e da China — os investimentos na produção do shale gas têm uma forte conexão com os interesses desses países em reduzir sua dependência energética e “nacionalizar” sua matriz energética. Esse argumento também pode ser replicado para o caso do GNL, cuja expansão permite uma maior diversificação dos fornecedores de gás, investimentos internos em terminais de regaseificação resultando num aumento do poder de barganha por parte dos grandes compradores⁵. Ou seja, do ponto de vista da soberania, com esse novo mercado os principais demandantes globais de gás têm conseguido deter um maior controle nacional do ritmo e da forma de exploração e compra do gás natural.

Esse cenário também não é muito distinto em outras regiões. Na Europa, por exemplo, observa-se um movimento de fontes alternativas aos gasodutos da Rússia para atender a demanda de gás natural. A expansão de gasodutos para o Oriente Médio, Ásia e Norte da África deve criar um forte incentivo para a compra de cargas de GNL, que passam a estar disponíveis no mundo com a mudança da situação dos EUA, que deixa de ser um país importador do produto, para tornar-se um exportador líquido. Busca-se, assim, reduzir a influência russa sobre o continente europeu em geral e sobre a Alemanha em particular.

A América do Sul também deve ter uma mudança no fluxo do comércio de gás regional em função, por um lado, das dificuldades enfrentadas pela produção boliviana e, por outro, pelas descobertas de gás não convencional na Argentina e do gás do pré-sal no Brasil.
No caso boliviano, a promoção de novas políticas públicas para o maior uso do gás nesta década teve como resultado imediato um aumento da demanda interna por esta fonte energética. Isso num cenário de queda da produção da Bolívia somada aos compromissos recém assumidos de fornecer gás para a Argentina colocam em dúvida a capacidade do país de sustentar sua posição de grande exportador de gás sul-americano:

(…) quanto às importações de gás da Bolívia, a falta de investimentos somada à queda brusca na relação reserva/produção da Bolívia e o compromisso assumido de fornecimento para Argentina coloca dúvida sobre a capacidade da Bolívia em atender às demandas dos mercados de exportação, assim como atender ao seu próprio mercado interno (DELGADO et. al., 2017).

Na Argentina, há uma expectativa de ampliação da produção de gás convencional e não convencional, principalmente na região de Vaca Muerta, capaz de atender grande parcela do seu consumo no médio prazo. No entanto, como lembra Solbraekke (2017), o tempo para isso ocorrer deve depender dos necessários investimentos em infraestrutura. “A falta de equipamento e infraestrutura (isto é, estradas, trilhos e tubulações especialmente para água) significa que os recursos em Vaca Muerta levarão tempo para serem desenvolvidos” (SOLBRAEKKE, 2017).

Por fim, o Brasil deve se tornar, no médio prazo, um produtor fundamental na região por conta do desenvolvimento dos campos do pré-sal.

Segundo estudo recente do IBP-UFRJ (2017), com o pré-sal deve-se triplicar a capacidade da oferta interna de gás natural nos próximos anos, já desconsiderando os valores utilizados na reinjeção e queima de gás. Isso coloca o Brasil numa posição favorável de, pelo menos, atender boa parte da sua demanda interna.

Portanto, as pressões ambientais, a busca por um maior controle da matriz energética e as inovações de exploração (shale gas) e de transporte (GNL) tem modificado estruturalmente o setor de gás. Considerando-se as amplas possibilidades de uso do gás — energia elétrica, insumo industrial, consumo residencial etc. –, essas mudanças têm se acelerado nos últimos anos. Ao se posicionar como uma energia relativamente limpa, com uma tendência menor de monopólios globais (e cada vez menos atrelada ao mercado de petróleo) e com preços cadentes o gás se apresenta como uma fonte cada vez mais estratégica no processo de transição da matriz energética.

Dessa forma, torna-se um truísmo constatar que a diversificação de fornecedores e um mercado mais flexível tem sido a estratégia fomentada pelos grandes compradores de gás natural.

Uma nova era de segurança energética, reforçada pela oferta de gás natural, caracterizada por uma crescente oferta de GNL, está por vir.

A diversificação da oferta, ou seja, mais de uma fonte de suprimento, provou ser a melhor forma de hedge contra possíveis rupturas. Diversidade de fornecedores, estruturas contratuais menos rígidas e maior flexibilidade de mercado estão na pauta do dia quanto se trata do mercado de GNL. Entretanto, esta não é uma característica permanente deste mercado, o impacto da atual onda de super abastecimento será limitado, a menos que sejam tomadas novas decisões de investimentos (DELGADO et al., 2017, p. 15).

O movimento aparentemente paradoxal do mercado de gás em que há uma tendência de maior flexibilização e desverticalização da indústria e, ao mesmo tempo, uma ampliação do controle nacional sobre as reservas e o gás adquirido no exterior deve ser observado levando-se em consideração o fato de que o primeiro aspecto está subordinado ao segundo.

Isto é, a flexibilização e a desverticalização ocorrem de forma seletiva para facilitar que os grandes compradores tenham justamente maior poder de barganha e controle sobre os fornecedores. Com isso, a entrada de novos atores no setor e o aumento do fluxo de comércio de gás não deve ser entendida como fruto de um mera desregulamentação. Pelo contrário, é um movimento dos consumidores — China, Japão, Índia, Europa e Estados Unidos — de reduzirem sua dependência energética.

É nesse contexto que se deve entender a situação do mercado de gás no Brasil. Isto é, as lacunas e oportunidades existentes devem dialogar, em última instância, com um planejamento coordenado de segurança energética. Esta ressalva é central na discussão aqui proposta, porque as políticas setoriais e a estrutura do mercado de gás brasileiro do último triênio têm se caracterizado por uma profunda abertura e a entrada de múltiplos agentes nos diferentes elos da cadeia produtiva. Tais medidas de abertura e desverticalização do setor somadas às descobertas do pré-sal devem ser cuidadosamente analisadas pois trazem desafios e oportunidades no médio e longo prazo.

As novas condições do mercado de gás natural no Brasil: estrutura de mercado e políticas setoriais

Até o início desta década, o mercado brasileiro de gás natural era fortemente integrado e coordenado pelo setor público, principalmente em razão do papel desempenhado pela Petrobras, e o seu abastecimento dependia basicamente da produção nacional e do gás boliviano.

Segundo Romeiro (2016), até meados desta década, a Petrobras tinha grande protagonismo na cadeia de gás natural, sendo um agente monopolista de quase todos os elos (gasodutos, terminais de processamento e regaseificação, sócia do transporte) e na exploração e produção, além de ter uma participação superior a 80% nas distribuidoras estaduais. O papel fundamental da Petrobras não se manifestava apenas nos ativos e na atuação do setor, mas na capacidade de investir e impulsionar o desenvolvimento de toda a cadeia de gás.

Entre 2005 e 2012, a Petrobras assumiu esse papel de coordenação operacional ao mesmo tempo em que o governo federal criou uma nova lei de regulação do gás que afetava desde o transporte até a estocagem. Houve uma certa flexibilização do setor e maior permissão para atuação de terceiros, como a introdução do regime de concessão para a construção e uso dos gasodutos, a partir da criação da Lei do Gás em 2009.

A Lei do Gás, embora incentivasse a entrada de novos agentes no setor principalmente no acesso aos gasodutos, manteve o papel do Estado de coordenador por meio do Ministério de Minas e Energia (MME) e operador do setor por intermédio da Petrobras.

Com a introdução do Plano Decenal de Expansão da Malha de Transporte Dutoviário (Pemat), o MME assumiu um protagonismo na coordenação do transporte e da distribuição do gás. De acordo com Villarim (2014, p. 71), o MME “adquiriu competências regulatórias imprescindíveis para a organização do setor gasífero (…) a decisão sobre a construção e ampliação de gasodutos, por exemplo”.

A Petrobras, por seu turno, preservou sua função de grande operadora da produção, processamento e transporte do gás natural, além de ser um ator relevante na distribuição e comercialização⁷.

Com isso, a Petrobras permaneceu até 2012 com mais de 90% da produção de gás natural no país e responsável pela operação de todos os terminais de processamento e gasodutos. Na logística e distribuição do gás, a Petrobras não apenas tinha participação de várias distribuidoras de gás, como se caracterizou como a grande investidora na malha de dutos e terminais.

Em 2009, por exemplo, a petrolífera brasileira anunciou uma parceria com a BG Group para criar uma joint-venture para desenvolver a construção de uma unidade de liquefação de gás natural embarcada (GNLE) em plataformas marítimas. Na ocasião, essa iniciativa foi apresentada justamente como uma alternativa para escoar o gás produzido no pré-sal na Bacia de Santos. Nesse período, a Petrobras também sinalizava o interesse em ampliar a malha de gasodutos nacional

No entanto, a reversão do plano estratégico da Petrobras e as novas políticas setoriais modificaram a trajetória do mercado de gás natural no Brasil.

No que se refere à Petrobras, a decisão de desinvestimentos apresentada no Plano de Negócios e Gestão (PNG-2017–2021) tem significado a sua retirada acelerada de vários etapas da cadeia de gás. Em relação às políticas setoriais, a introdução da nova legislação denominada de Gás para Crescer em substituição à Lei do Gás acelerou o movimento de abertura e descoordenação estatal do setor.

As duas subseções seguintes investigam a atual estrutura de mercado e de regulação do setor a partir das mudanças citadas acima.

i. A configuração de uma nova estrutura de mercado de gás natural

Como já mencionado, a oferta brasileira de gás natural se concentrava em dois grandes mercados: a produção nacional e as importações da Bolívia. No entanto, entre 2011 e 2015, o aumento da demanda por energia elétrica num período de seca prolongada, em que reservatórios hidrelétricos regionais diminuíram drasticamente, uma terceira fonte de oferta passou a cumprir um papel importante: as importações de GNL (DELGADO et al., 2017).

Como mostra o Gráfico 2, entre 2009 e 2017, a produção nacional de gás natural — quase que toda concentrada nas mãos da Petrobras — saltou de 31,2 milhões de metros cúbicos por dia (MMc/dia) para 58,5 MMc/dia, muito em função do aumento da produção do pré-sal⁸.

O valor importado da Bolívia se manteve praticamente estável ao longo do período, em torno de 23 MMc/dia, alternando alguns momentos de subida e queda nos últimos dez anos. Apesar disso, a participação da importação boliviana por volta de 35% é bastante expressiva. Já a importação de GNL oscilou positivamente entre 2012 e 2015 principalmente para atender a ausência de energia hidrelétrica.

Gráfico 2  Composição da oferta de gás natural por origem (2009–2017, em milhões de metros cúbicos/dia)

Fonte: ANP. Elaboração própria

Mais interessante ainda é que, a exemplo do que se tem observado em outros países, o Brasil tem diversificado o fornecimento de GNL, como aponta o Gráfico 3. Em 2009, apenas o Qatar e a Espanha exportavam gás natural para o Brasil. A partir de 2010, inicia-se um processo de acordos como novos fornecedores que culmina numa pauta de importação por origem mais diversificada. Em 2015, treze países forneciam gás natural para o Brasil, com destaque para Nigéria, Catar e Trinidad e Tobago.

Gráfico 3 — Destinação da produção nacional de gás natural (2009–2017, em %)

Fonte: ANP. Elaboração própria

Esse aumento das importações de GNL não seria necessário se houvesse um maior aproveitamento do gás natural produzido internamente para o consumo ao invés de ser reinjetado nos poços produtores. Ou seja, o acelerado crescimento da produção nacional não tem se transformado em oferta interna de energia por conta do crescimento do volume de gás reinjetado.

De acordo com o Gráfico 4, o crescimento da oferta de energia mais que dobrou desde 2009, saltando de 24,8 MMc/dia naquele para 58,5 MMc/dia até 2014. No entanto, o volume de gás reinjetado também mais do que duplicou subindo de 11,9 MMc/dia para 27,5 MMc/dia, entre 2009 e 2014. Entre as outras formas de utilização do gás natural, o consumo do gás nas unidades de E&P teve um aumento importante no período analisado, saltando de 8,5 MMc/dia em 2009 para 13,4 MMc/dia em 2017.

No entanto, cabe ressaltar que esse aumento se deve basicamente não a uma maior utilização do gás nas unidades de exploração e produção de gás, mas sim pelo crescimento da frota de unidades existentes na costa brasileira para atender os investimentos realizados nos últimos anos.

Gráfico 4 — Destinação da produção nacional de gás natural (2009–2017, em milhões de metros cúbicos/dia)

Fonte: ANP. Elaboração própria

Nesta década, o crescimento da produção de gás natural principalmente no pré-sal se deveu aos investimentos da Petrobras que também começou a encontrar oportunidades de ampliar sua forte atuação na produção em campos terrestres⁹. No entanto, particularmente nos últimos quatro anos, por conta da entrada de novas empresas produtoras e das venda de ativos promovida pela estatal brasileira, observou-se uma perda de participação da Petrobras na produção nacional.

Ao analisar o Gráfico 5, empresas como a BG Brasil (recém comprada pela Shell), Parnaíba Gás e Petrogal ampliaram sua participação na produção de gás natural do Brasil. A BG Brasil, pro exemplo, que possuía apenas 0,7% da produção nacional viu seu percentual subir para 8,0% em 2016. A Petrobras, por sua vez, que tinha uma participação de 91,0% em 2011 já perdeu quatorze pontos percentuais alcançando 77,0%.

Gráfico 5— Participação das concessionárias da produção nacional de gás natural (2009–2017, em %)

Fonte: ANP. Elaboração própria. *No final de 2016, a Shell comprou a BG Brasil e, a partir de setembro de 2017, a produção de gás natural da BG Brasil passou a ser contabilizada como da Shell. Em função disso, os dados da BG Brasil, desde setembro de 2017, contabilizam a produção pertencente a BG mais a produção já existente da Shell.

Embora tivesse perdido espaço na produção de gás, a Petrobras permaneceu como proprietária exclusiva dos quatorze polos de processamento de gás no Brasil. Esses polos estão distribuídos pelas regiões Norte (polo Urucu), Nordeste (polos Lubnor, Guaramaré, Pilar, Atalaia, Candeias, Santiago, Vandemir Ferreira) e Sudeste (Cacimbas, Sul Capixaba, Reduc, Cabiúnas, RBPC e Caraguatatuba).

No entanto, como resultado da política de desinvestimentos do último triênio, a capacidade de processamento de gás natural, que cresceu fortemente até 2011, estacionou na faixa dos 95.000 MMc/dia, como mostra a Tabela 1.

Entre 2009 e 2011, a capacidade de processamento de gás natural aumentou 35% principalmente pelos investimentos em expansão do polo de Cacimbas e pela entrada de produção do polo de Caraguatatuba. Entre 2011 e 2014, o ritmo de crescimento caiu acentuadamente, ficando em 7%. Nesse período, houve a expansão do polo de Caraguatatuba e também de Urucu que, juntos, viram sua capacidade de processamento ampliar em 8.494 MMc/dia. Por fim, nos últimos três anos, ocorreu uma pequena queda capacidade de processamento de gás (-1%) em razão da interrupção de obras importantes, como o Comperj, e também pela redução da capacidade de Cabiúnas.

Tabela 1 — Capacidade de processamento de gás natural dos polos produtores no Brasil (2009–2016, em MMc/dia)

Fonte: ANP. Elaboração própria.

Até o final de 2015 a Petrobras controlava exclusivamente quase toda a malha de gás nacional. No entanto, a politica de desinvestimentos da estatal tem desmontado essa estrutura patrimonial principalmente com a venda de parte da Transportadora Associada de Gás S.A. (TAG) por meio da alienação de suas redes dutoviárias (TNS, NTS, NTN).
Além disso, a Petrobras já sinalizou a intenção de privatização da TBG e de vender o restante da TAG. Segundo informações de outubro de 2017, “a estatal informou que iniciou o processo de venda da TAG, a Transportadora Associada de Gás. A empresa é dona da maior rede de gasodutos do país, com 4,5 mil quilômetros de extensão distribuídos entre as regiões Norte, Nordeste e Sudeste. O objetivo é vender 90% das ações da subsidiária, que tem uma capacidade de transporte de 74.670 MMc/dia” (EPOCA, 2017).

Se essas vendas forem efetivadas, o Estado pode perder o controle de mais de 74% de todo o complexo de gasodutos de transporte do país.

A TAG é responsável pelo transporte de gás natural entre o Rio de Janeiro e todos os estados do Nordeste até o Ceará. E a TBG compreende um gasoduto com 2.593 quilômetros que tem início em Corumbá/MS e termina na cidade de Canoas/RS, garantindo o abastecimento de CDLs, termelétricas e refinarias de 136 municípios em cinco estados brasileiros.

A recuperação dos investimentos no Gasbol (Gasoduto Bolívia–Brasil) está garantida pelos contratos de serviço de transporte com duração de vinte a quarenta anos, na modalidade ship or pay (na qual os usuários do serviço de transporte devem pagar pela capacidade de transporte contratada, independentemente do volume transportado). Dos 9.409 quilômetros de extensão total da malha dutoviária brasileira de gás natural, a TAG e a TBG somadas representam cerca de 7.000 quilômetros.

No que se refere à distribuição e comercialização de gás, com exceção das distribuidoras do Rio de Janeiro (CEG e CEG-Rio) e de São Paulo (Comgás e Gás Natural Fenosa), todas as demais têm capital e controle estatal¹¹, via de regra os governos estaduais detém 51% das ações com direito a voto. O restante do capital acionário está dividido entre outras empresas com a Petrobras, que tem participação em todas elas, por meio da Gaspetro. Todavia, com a venda de 49% da Gaspetro para a japonesa Mitsui a Petrobras também reduziu sua participação no segmento de distribuição e comercialização do gás.

A distribuição do gás natural tem tido como principal alvo a geração elétrica e o uso industrial, como mostra o Gráfico 5, principalmente para substituir as hidrelétricas.

Gráfico 6— Composição da demanda interna de gás natural (2009–2017, em milhões de metros cúbicos/dia)

Fonte: MME. Elaboração própria

Os setores industrial e de geração demandam mais de 80% do gás ofertado no país. Somados os dois segmentos, desde 2013, a demanda por gás superou os 70 MMc/dia. Na sequência, aparece o setor automotivo, com uma demanda pouco superior a 5 MMc/dia. Por fim, seguem os setores residencial e comercial que consomem menos de 5 MMc/dia, sendo que na indústria, a utilização também tem relação com a energia elétrica. Portanto, “o recente padrão de demanda do gás natural está estreitamente relacionado às condições meteorológicas que afetam o setor de geração hidrelétrica” (MENDES et al., 2015).

Em resumo, as informações apresentadas anteriormente sugerem uma transformação da oferta e demanda do gás natural num contexto de forte entrada de múltiplos atores em diferentes etapas da cadeia de gás natural, com a perda de importância da Petrobras.

Nas etapas de exploração e produção, bem como de processamento, a Petrobras, embora tenha perdido importância, continua como o maior produtor e o único responsável pelo processamento de gás natural. Nas etapas de transporte em diante, a Petrobras tem perdido espaço para diferentes atores, isto é, as empresas que têm ingressado no transporte não são as mesmas da distribuição. Isto num cenário de desregulamentação promovida pelo Gás para Crescer e de liberalização dos preços deve impor enormes desafios no médio e longo prazo.

A próxima subseção visa apresentar essas duas políticas setoriais: a nova regulação imposta pelo Gás para Crescer e a política de preços do setor.

ii. Gás para Crescer: mudanças e desafios

O programa Gás para Crescer construído pelo MME no biênio 2016–2017, em parceria com outros atores governamentais e empresariais, tem como objetivo remodelar o mercado e a regulação do gás natural no país nas etapas de processamento, transporte, bem como na distribuição e comercialização¹².

O processo de escoamento, processamento e acesso a terminais de GNL, antes orientado pelas necessidades de fornecimento, passam a ser orientados pela garantia do acesso prioritário para os proprietários e o acesso deve ser negociado caso a caso com a iniciativa privada.

No que se refere ao transporte, a principal mudança diz respeito ao encolhimento do papel da Petrobras, do MME e da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) em contraposição ao estabelecido pela Lei do Gás. Naquele marco, cabia à Petrobras coordenar a operação de transporte, com a nova regra a operação passa a ser gerida por transportadoras privadas independentes. De forma análoga, antes desse novo marco o MME em conjunto com a EPE eram responsáveis pelo planejamento logístico da malha dutoviária brasileira, de acordo com o Gás para Crescer essa responsabilidade é transferida aos planos de investimento dos transportadores privados credenciados pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP).

Nesse sentido o papel do Estado planejador perde espaço para a concepção do Estado como ente meramente regulador.

Mais ainda, no modelo anterior a contratação da capacidade de transporte era feita ponto a ponto nos gasodutos de transporte. Como há muitos trechos de interconexão na malha dutoviária brasileira, dada sua grande extensão, as avaliações ponto a ponto permitiam aferir o volume de gás subtraído em cada operação, por exemplo, de liquefação e regaseificação. A partir do novo modelo, a contratação de capacidade de transporte passa a se dar na modalidade de entradas e saídas, o que significa que a quantidade do volume contratado pode divergir da quantidade do volume entregue, possibilitando ganhos excedentes aos transportadores privados.

Além disso, o regime de concessão¹³ para gasodutos de transporte como regra geral está sendo substituído pelo regime de autorização, com possibilidade de contestação por outros transportadores interessados.

O novo modelo (…) prevê que o transportador interessado em construir um gasoduto apresente o pleito à ANP. O projeto, porém, estará sujeito à contestação por terceiros. E, caso surja outra empresa com plano de construção do gasoduto com um menor custo e maior benefício à malha atual, segundo avaliação da EPE, esta terá o direito de implantar o empreendimento (POLITO, 2017).

Por fim, o regime anterior previa mecanismos de cessão compulsória da capacidade de transporte. Nos períodos sazonais em que as hidrelétricas sofrem com o baixo nível de águas, as termelétricas movidas a gás são mobilizadas a fim de suprir a demanda nacional, nesses períodos o aumento do gás transportado se impõe como garantia para o abastecimento de energia. Entretanto, na atual proposta a “cessão compulsória” é substituída pela “regulação da capacidade”, como os termos dessa regulação ainda são pouco claros, não é de se descartar o surgimento de eventuais problemas de abastecimento em função da impossibilidade de utilização de trechos dos gasodutos de transporte.

Do ponto de vista da comercialização, a negociação do gás em pontos físicos passa a ser substituída pela negociação virtual (virtual hubs), tal medida acompanhada do já mencionado modelo de transporte por entradas e saídas, pode criar descasamentos de preços e prazos entre o transporte e a comercialização do gás, a proposta ainda explicita a necessidade da restrição da fatia de mercado detida pela Petrobras.

No que se refere à distribuição, por seu turno, a regulação estadual deve ser substituída pela regulação federal, com a liberalização gradual do mercado de cada unidade da federação.

Vale lembrar: a Constituição de 1988 assegurou aos estados o direito de explorar o mercado de gás, nos anos 1980 e 1990 muitos governos estaduais criaram suas próprias empresas distribuidoras e/ou firmaram contratos de concessão, em sua maior parte, para períodos de 30 ou 50 anos, com possibilidades de prorrogação estando, portanto, ainda em vigência, por isso a proposta tem gerado tensões e incertezas entre os governos estaduais. Além disso, há muita heterogeneidade entre os marcos regulatórios estaduais, São Paulo e Rio de Janeiro que privatizaram suas distribuidoras ainda na década de 1990, por exemplo, trabalham com modelos contratuais bastante distintos daqueles praticados por outras unidades federativas. A proposta de centralização em uma regulação federal não é contestável por si só, mas exige um conjunto de mudanças e articulações federativas que não podem ser feitas de maneira acelerada.

As mudanças regulatórias promovidas pelo Gás para Crescer trazem desafios importantes para o mercado de gás com a eliminação do papel de articuladora da Petrobras, com a entrada de múltiplos agentes no setor e com as mudanças de regulação que necessitarão de novas institucionalidades para coordenar as atividades do setor.

Como observado na comercialização do gás, há riscos de descasamentos no fornecimento, o que pode prejudicar o atendimento ao mercado interno. Isso também pode, por exemplo, afetar o preço no longo prazo. Como mostra o Gráfico 5, até 2015 o preço do gás natural no mercado interno era relativamente mais baixo que outras praças com a estrutura de coordenação centralizada na Petrobras. Até 2015, o preço do gás brasileiro — apresentado na pela linha verde clara — só era superior que os preços do mercado Henry Hub e NBL.

Gráfico 5 — Cotações e referências do preço do gás natural e petróleo no Brasil e no mundo (2004–2015, em US$/barris equivalentes de petróleo)

Fonte: EY — Centro de energia Brasil

Adicionalmente, a formalização do “Gás para crescer” gera barreiras regulatórias importantes que devem ser superadas, principalmente no que se refere à ausência de um agente regulador do transporte do gás e do uso dos gasodutos. Enquanto na Lei do Gás, a Petrobras era o ente controlador da malha de gasoduto e havia um regime de concessão para o seu uso, agora não há mais um coordenador da malha e o regime de utilização passa a ser o de autorização sem um regulador especifico. Isso trará sérias dificuldades no médio prazo. Um outro desafio importante é a dificuldade de garantir uma oferta estável para os contratos de vendas no contexto atual deste mercado no país. De acordo com o estudo do IBP-UFRJ (2017, p. 28):

A produção de um campo de gás natural pode variar ao longo do tempo, em função de questões técnicas e geológicas. Assim, a garantia de um volume estável para a venda direta de gás natural para consumidores finais é um desafio, já que não existe um mercado secundário de gás natural e nem infraestrutura de estocagem. No contexto atual do mercado, não existe como comprar um back-up de gás no Brasil, caso haja algum evento imprevisto na produção.

Desse modo, além das dificuldades de coordenação e incertezas de longo prazo, a nova legislação impõe barreiras que precisam ser superadas e reavaliadas nesse processo de acelerada abertura do setor de gás.

À guisa de conclusão: oportunidades e desafios num novo mercado de gás natural

O artigo busca apresentar as principais modificações estruturais e setoriais no mercado de gás natural global e também no Brasil. Ao fim e ao cabo, analisam-se as mudanças globais do setor de gás natural e o posicionamento do Brasil — que também passa por transformações relevantes — de forma a entender quais são as oportunidades e os desafios gerados para o país nessa conjuntura.

Em primeiro lugar, observa-se que o gás natural é uma fonte importante nos processos de transição energética para novas matrizes energéticas por ser um hidrocarboneto mais limpo e por já existir uma infraestrutura consolidada para sua produção e comercialização nos países com maior demanda por energia. Em segundo lugar, o mercado de gás tem se tornado cada vez mais integrado e flexível em nível global por conta do crescimento do uso do gás natural liquefeito (GNL). O processo de liquefação e regaseificação do gás abre novas formas de transporte, como por navios, tornando o mercado deste produto muito mais flexível. Em terceiro lugar, o crescimento da produção de shale gas, principalmente nos Estados Unidos, tem permitido uma redução global do preço do gás e mudança dos fluxos de comércio deste produto.

Além disso, do ponto de vista geopolítico, os grandes players globais têm se aproveitado dessas mudanças para realizar uma maior diversificação de seus fornecedores de gás e garantir uma maior controle nacional. Isso tem se dado tanto pelo aumento do numero de fornecedores de gás, como por investimentos internos em campos de gás natural convencional e não convencional.

É nesse cenário que devem ser analisadas as mudanças ocorridas no mercado de gás no Brasil que podem ser listadas da seguinte forma:

  • potencial crescimento da produção nacional nos próximos anos por conta do pré-sal e de outras formas de exploração;
  • dependência do gás boliviano, embora esta seja cada vez menor;
  • entrada de múltiplos agentes na exploração, produção, transporte e comercialização do gás;
  • menor poder regulatório e de coordenação do Estado Nacional em função das mudanças promovidas pelo Gás para Crescer e pelo desinvestimentos da Petrobras;
  • incerteza da demanda interna de gás natural, por conta da sazonalidade de chuvas;
  • com a gradual retirada da Petrobras no setor de gás, há uma incerteza sobre a expansão dos investimentos, principalmente nas áreas de processamento e transporte de gás em taxas necessárias para atender o potencial de crescimento a demanda interna.

Considerando todas essas transformações de ordem geopolítica e setorial, bem como as tendências no mercado de gás brasileiro, existem desafios e oportunidades importantes de serem destacados.

Quanto às oportunidades, chama a atenção o considerável potencial de expansão da produção do gás natural no Brasil. No caso do pré-sal, onde o risco exploratório é baixo, a produção de gás já é uma realidade e deve crescer ainda mais. Nas áreas terrestres, existem áreas promissoras em volumes de reservas de gás principalmente na Bahia e no Paraná que podem abastecer mercados locais. De acordo com um estudo de Mendes et al. (2015), as bacias de Tucano Sul, localizada na mesorregião do Nordeste Baiano, e a do Paraná, que é abrangida pelo sul da região Centro-Oeste à região Sul, apresentam situação mais propícia ao aproveitamento das suas reservas de gás, pois essas regiões compreendem potenciais centros consumidores de grande porte em condições que facilitam a implantação de infraestrutura para o transporte e a distribuição do gás. No entanto, os investimentos em novos gasodutos são fundamentais para o transporte do gás produzido nessas regiões.

O mercado crescente de GNL e a entrada de novos ofertantes, como África do Sul, permite ao Brasil reduzir sua dependência do Gasbol no curto prazo e diversificar seus fornecedores. O Brasil também apresenta custos relativamente mais baixos para a importação de GNL em função da sua proximidade com os mercados americano (EUA e América Central) e africano. Nesse sentido, a necessidade de manutenção dos investimentos da Petrobras em terminais de regaseificação e de recebimento deve ditar a capacidade de aproveitamento do GNL.

Em relação aos desafios, cabe destacar as fragilidades existentes na etapa de exploração e produção. Em primeiro lugar, embora haja um potencial para a expansão da demanda de gás, ainda existem barreiras importantes do ponto de vista logístico e de infraestrutura. O escoamento e a distribuição do gás produzido nacionalmente (em terra e no mar) ainda consiste num grande desafio de longo prazo. Em segundo lugar, necessita-se reavaliar o papel do Gasbol na indústria nacional de gás tendo em vista os desafios colocados, tais como a proximidade do fim dos contratos¹⁴, a ausência de investimentos e os compromissos assumidos pela Bolívia com a Argentina.

Na questão de processamento, transporte e distribuição, a questão-chave está no papel da Petrobras e na coordenação destas etapas da cadeia de gás natural. No processamento, como observado, os investimentos dependem fortemente da estatal brasileira e, a atual política de desinvestimentos da Petrobras deixa dúvidas sobre a realização de tais investimentos no médio e longo prazo.

No transporte, a mudança do regime de concessão para o de autorização pode promover insegurança jurídica em função de uma possível intensificação de contestações que podem se converter em uma infinidade de litígios judiciais, ou de acordos extra-judiciais, entre as transportadoras privadas, esse movimento pode, em última instância, impactar no preço final do produto. Além disso, a construção e utilização dos gasodutos por vários agentes demanda a existência de um agente regulador para mediar essa relação, principalmente com a retirada do papel regulatório que deveria ser cumprido pelo MME e pelo fim da coordenação realizada pelo Plano Decenal de Expansão da Malha de Transporte Dutoviário do País (Pemat).

Ao analisar de forma geral a proposta do Gás para Crescer para a cadeia produtiva de gás natural — que é extremamente complexa e envolve inúmeros atores públicos e privados — pode-se observar uma alienação de um recurso estratégico tanto para o desenvolvimento atual quanto para uma futura transição da matriz energética, além de trazer novos riscos e deixar muitas incertezas.

Ademais, a abertura para novos produtores coloca como questão a garantia de uma oferta estável, tema do qual a legislação não trata.

Já o processo de desinvestimentos da Petrobras traz uma preocupação em relação à articulação dos investimentos da cadeia produtiva de gás natural. Primeiro, porque no setor de gás há uma grande sincronia entre oferta e demanda para que os investimentos sejam efetivados, isto é, a construção de um gasoduto de transporte vai depender da existência de um distribuidor e de um potencial de comercialização. É justamente por isso que Almeida e Ferraro revelam que há “uma tendência quase que natural dessas indústrias se integrarem verticalmente”. Segundo, porque particularmente no caso brasileiro, há uma grande deficiência de participação do capital privado nacional em investimentos de alto risco e com grande necessidade de capital sem alguma garantia estatal. Nesse sentido, a Petrobras assumiu a tarefa, desde os anos 2000, de se constituir como uma empresa integrada de energia capaz de articular operacionalmente toda a cadeia apoiando no fomento de investimento e na geração de demanda para o gás natural. Terceiro, o Brasil ainda é uma indústria pouco madura de gás natural e, pela ausência de atores operacionais e infraestrutura, a verticalização é mais adequada.

O futuro da Petrobras, do marco regulatório do setor de gás e do projeto de soberania energética devem determinar o aproveitamento dessas oportunidades e a superação desse desafios.

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Por Rodrigo Pimentel Ferreira Leão, mestre em Desenvolvimento Econômico (IE/UNICAMP). Foi gestor de planejamento da Petros e atualmente é integrante do Grupo de Estudos Estratégicos e Propostas da Federação Única dos Petroleiros (GEEP-FUP) e pesquisador visitante do NEC/UFBA, e William Nozaki, cientista Político, professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) e coordenador do curso Estado, governo e políticas públicas da FLACSO-FPA, é integrante do Grupo de Estudos Estratégicos e Propostas da Federação Única dos Petroleiros (GEEP-FUP), para o Instituto Lula.

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