Marilena Chauí: “Comunicação e Democracia”

A filósofa participou da Conferência Nacional Lula Livre: Vencer a Batalha da Comunicação, realizada em São Paulo, entre os dias 13 e 14 de abril

Roberto Parizotti

Marilena Chauí

Para analisar o atual cenário político brasileiro é preciso, necessariamente, levar em conta dois pontos fundamentais no processo de construção da narrativa neoliberal que culminou numa série de retrocessos desde o golpe de 2016 e cujo episódio mais recente foi a prisão política do ex-presidente Lula: a relação entre democracia e comunicação.

Foi sob esta perspectiva que a filósofa Marilena Chauí e o cientista político Juarez Guimarães traçaram um panorama sobre o país no debate que abriu o último dia da “Conferência Lula Livre: Vencer a Batalha da Comunicação” realizada em São Paulo em 13 e 14 de abril. Foram disponibilizadas as íntegras das duas apresentações tanto por sua contribuição intelectual, histórica e política.

Abaixo, está disponibilizada a íntegra da apresentação de Marilena:

I.

A concepção liberal reduz a democracia a um regime político eficaz, baseado na ideia de cidadania definida por direitos civis (a liberdade e a igualdade perante a lei), organizada em partidos políticos e que se manifesta no processo eleitoral de escolha dos representantes, sendo sustentado pela rotatividade dos governantes e pelas soluções técnicas para os problemas econômicos e sociais.

Todavia, a democracia ultrapassa a ideia de um regime político para definir a forma da própria sociedade, isto é, a sociedade democrática. Em outras palavras, a democracia é uma forma sociopolítica definida pelo princípio da isonomia (igualdade dos cidadãos perante a lei) e da isegoria (direito de todos para expor em público suas opiniões, vê-las discutidas, aceitas ou recusadas em público), tendo como base a afirmação de que todos são iguais porque livres, isto é, ninguém está sob o poder de um outro porque todos obedecem às mesmas leis das quais todos são autores (autores diretamente, numa democracia participativa; indiretamente, numa democracia representativa).

Essa forma sociopolítica, nas sociedades divididas em classes, busca conciliar o princípio da igualdade e da liberdade e a existência real das desigualdades introduzindo a ideia dos direitos que não são apenas civis (como julga o liberalismo), mas também econômicos, sociais, políticos e culturais. Graças aos direitos, os desiguais conquistam a igualdade, entrando no espaço político para reivindicar a participação nos direitos existentes e sobretudo para criar novos direitos. Estes são novos não simplesmente porque não existiam anteriormente, mas porque são diferentes daqueles que existem, uma vez que fazem surgir como cidadãos novos sujeitos políticos que os reivindicaram e os fizeram ser reconhecidos por toda a sociedade, isto é, como universais.

Por isso mesmo a democracia é a única forma sociopolítica na qual o caráter popular do poder e das lutas tende a evidenciar-se nas sociedades de classes, na medida em que os direitos só ampliam seu alcance ou só surgem como novos pela ação das classes populares contra a cristalização jurídico-política que favorece a classe dominante. Por conseguinte, é a única forma sociopolítica na qual, ao contrário de todas as outras, o conflito é considerado legítimo e necessário, buscando mediações institucionais para que possa exprimir-se. A democracia não é o regime do consenso, mas do trabalho sociopolítico do dissenso. Politicamente, graças à prática da criação de direitos, a democracia surge como o único regime político realmente aberto às mudanças temporais, uma vez que faz surgir o novo como parte de sua existência e, consequentemente, a temporalidade como constitutiva de seu modo de ser, de maneira que a democracia é a sociedade verdadeiramente histórica, isto é, aberta ao tempo, ao possível, às transformações e ao novo.

Ora, a sociedade brasileira é estruturalmente antidemocrática porque é estruturalmente violenta, hierárquica, vertical, autoritária e oligárquica.

De fato, nossa sociedade é marcada pelo predomínio do espaço privado sobre o público e, tendo seu centro na hierarquia familiar, é fortemente verticalizada em todos os seus aspectos: nela, as relações sociais e intersubjetivas são sempre realizadas como relação entre um superior, que manda, e um inferior, que obedece. As diferenças e assimetrias são sempre transformadas em desigualdades que reforçam a relação de mando e obediência. O outro jamais é reconhecido como sujeito nem como sujeito de direitos, jamais é reconhecido como subjetividade nem como alteridade. As relações, entre os que julgam iguais, são de “parentesco”, isto é, de cumplicidade; e, entre os que são vistos como desiguais, o relacionamento toma a forma do favor, da clientela, da tutela ou da cooptação. E, quando a desigualdade é muito marcada, assume a forma da opressão.

Nela, há a recusa tácita (e, às vezes, explícita) para fazer operar o mero princípio liberal da igualdade formal e a dificuldade para lutar pelo princípio socialista da igualdade real: as diferenças são postas como desigualdades e estas como inferioridade natural (no caso das mulheres, dos trabalhadores, dos negros, índios, migrantes, idosos) ou como monstruosidade (no caso dos homossexuais).

Nela, há a recusa tácita (e, às vezes, explícita) de operar com o mero princípio liberal da igualdade jurídica e a dificuldade para lutar contra formas de opressão social e econômica: para os grandes, a lei é privilégio; para as camadas populares, repressão. A lei não deve figurar e não figura o polo público do poder e da regulação dos conflitos, nunca definindo direitos e deveres dos cidadãos porque a tarefa da lei é a conservação de privilégios e o exercício da repressão. Por este motivo, as leis aparecem como inócuas, inúteis ou incompreensíveis, feitas para serem transgredidas e não para serem transformadas. O Poder Judiciário é claramente percebido como distante, secreto, representante dos privilégios das oligarquias e não dos direitos da generalidade social.

Nela, os conflitos não são ignorados e sim recebem uma significação precisa: são considerados sinônimo de perigo, crise, desordem. Por isso, a eles se oferece uma única resposta: a repressão policial e militar, para as camadas populares, e o desprezo condescendente, para os opositores em geral.

Nela, é operada a naturalização das desigualdades econômicas e sociais – a desigualdade salarial entre homens e mulheres, entre brancos e negros, a exploração do trabalho infantil e dos idosos são consideradas naturais; a existência dos sem-terra, dos sem-teto, dos desempregados é atribuída à ignorância, à preguiça e à incompetência dos “miseráveis”; a existência das crianças sem infância é vista como “tendência natural dos pobres à criminalidade”. Do mesmo modo, há naturalização das diferenças étnicas, postas como desigualdades raciais entre superiores e inferiores, das diferenças religiosas e de gênero, bem como naturalização de todas formas visíveis e invisíveis de violência.

Nela, está bloqueada a esfera pública da opinião como expressão dos interesses e dos direitos de grupos e classes sociais diferenciados e\ou antagônicos. Os meios de comunicação monopolizam a informação e o consenso é confundido com a unanimidade, de sorte que a discordância é posta como ignorância ou perigo.

Em nossa sociedade, o Estado é patrimonialista e cartorial, organizado segundo a lógica clientelista e burocrática. O clientelismo bloqueia a prática democrática da representação – o representante não é visto como portador de um mandato dos representados, mas como provedor de favores aos eleitores. Por sua vez, a burocracia introduz o funcionamento antidemocrático do Estado, pois se baseia na hierarquia e não na igualdade, no segredo e não na informação e na rotina e não na criação de direitos.

Nossa sociedade está polarizada entre a carência absoluta das camadas populares e o privilégio absoluto das camadas dominantes e dirigentes, bloqueando a instituição e a consolidação da democracia. De fato, fundada na noção de direitos, a democracia está apta a diferenciá-los de privilégios e carências. Um privilégio é, por definição, algo particular que não pode generalizar-se nem universalizar-se sem deixar de ser privilégio. Uma carência é uma falta também particular ou específica que desemboca numa demanda também particular ou específica, não conseguindo generalizar-se nem universalizar-se. Um direito, ao contrário de carências e privilégios, não é particular e específico, mas geral e universal, seja porque é o mesmo e válido para todos os indivíduos, grupos e classes sociais, seja porque, embora diferenciado, é reconhecido por todos (como é caso dos chamados direitos das minorias). Assim, a polarização econômico-social entre a carência e o privilégio ergue-se como obstáculo à instituição de direitos, definidora da democracia.

A esses obstáculos, podemos acrescentar ainda aquele decorrente do encolhimento do espaço público e do alargamento do espaço privado, em outras palavras, a hegemonia do neoliberalismo. Do ponto de vista econômico, o neoliberalismo recusa a especificidade das diferentes instituições sociais e políticas e as torna homogêneas porque as define como empresas: a fábrica é uma empresa, a escola é uma empresa, o hospital é uma empresa, o centro cultural é uma empresa. Mais do que isso, define o indivíduo como capital humano ou empresário de si mesmo, destinado à competição mortal em todas as instituições ou pelo princípio universal da concorrência, disfarçada sob o nome de meritocracia.

Disso decorre, como consequência, a inculcação da culpa naqueles que não vencem a competição, desencadeando ódios, ressentimentos e violências de todo tipo, pois, como escreveu Marcuse em O homem unidimensional, “o sofrimento, a frustração, a impotência do indivíduo deriva de um sistema funcionando com alta produtividade e eficiência, no qual ele deveria auferir uma existência em nível melhor do que nunca. (…) com sua consciência controlada e vigiada, sua intimidade abolida, suas emoções integradas no conformismo, o indivíduo não dispõe mais de “espaço mental” suficiente para desenvolver-se contra o seu sentimento de culpa, para viver com uma consciência própria”.

E não só isso. Politicamente, o Estado deixa de ser considerado uma instituição pública regida pelos princípios e valores democráticos e passa a ser considerado uma empresa. Assim, do ponto de vista político, o encolhimento do espaço público e o alargamento do espaço privado decorrem da transformação da política em uma questão técnico-administrativa que deve ficar nas mãos de especialistas competentes, isto é, o governante definido como gestor.

Aos cidadãos cabe reconhecer a própria incompetência, confiar na competência dos gestores e reduzir a participação política ao momento do voto nas eleições, ou seja, reprime-se a ação dos movimentos sociais e populares. Sobretudo são negligenciados e ocultados o papel dos conflitos econômicos, sociais e culturais, as divergências entre forças políticas e a estrutura jurídica e burocrática do Estado, que ergue obstáculos à concretização de programas e projetos políticos visando quebrar a polarização entre carência e privilégio. Como explicou Chico de Oliveira, a política neoliberal é a decisão de destinar os fundos públicos aos investimentos do capital e cortar os investimentos públicos destinados aos direitos sociais. Isto explica porque a política neoliberal se define pela eliminação de direitos econômicos, sociais e políticos garantidos pelo poder público, em proveito dos interesses privados da classe dominante, isto é, em proveito do capital, transformando-os em serviços definidos pela lógica do mercado, isto é, a privatização dos direitos transformados em serviços, que aumenta a cisão social entre a carência e o privilégio, ampliando todas formas de exclusão.

II.

A estrutura autoritária da sociedade brasileira, o encolhimento do espaço público e o alargamento do espaço privado neoliberal colocam em evidência o bloqueio a um direito democrático fundamental sem o qual a cidadania, entendida como participação social, política e cultural é impossível, qual seja, o direito à informação.

Como observa Christopher Lash, em A Cultura do Narcisismo, os mass media tornaram irrelevantes as categorias da verdade e da falsidade, substituindo-as pelas noções de credibilidade ou plausibilidade e confiabilidade – para que algo seja aceito como real basta que apareça como crível ou plausível, ou como oferecido por alguém confiável. Os fatos cederam lugar a declarações de “personalidades autorizadas”, que não transmitem informações, mas preferências, e estas se convertem imediatamente em propaganda. Qual a base de apoio da credibilidade e da confiabilidade? A personalidade cuja vida privada se torna suporte e garantia da ordem pública.

A fronteira entre fatos e versões desaparece, todo discurso vira um tipo de venda de ideias concorrendo com os demais, seja na política, na economia, na cultura. A narrativa que melhor for comercializada e absorvida por indivíduos e coletividade é a que se tornará hegemônica. O que significa esse lugar dado à personalidade competente? Significa que as relações interpessoais, as relações intersubjetivas e as relações grupais aparecem com a função de ocultar ou de dissimular as relações sociais enquanto propriamente sociais e as relações políticas enquanto propriamente políticas.

De fato, as relações pessoais são imediatas, isto é, definidas pelo relacionamento direto entre pessoas e, por isso mesmo, nelas os sentimentos, as emoções, as preferências e os gostos têm um papel decisivo; ao contrário, as relações sociais e políticas são mediatas ou mediações referentes a interesses e a direitos regulados pelas instituições, pela divisão social das classes e pela separação entre o social e o poder político, mas agora perdem sua especificidade e passam a operar sob a aparência da vida privada, portanto, referidas a preferências, sentimentos, emoções, gostos, agrado e aversão.

Não é casual, mas uma consequência necessária dessa privatização do social e do político, a destruição de uma categoria essencial das democracias, qual seja a da opinião pública. Esta, em seus inícios modernos, era definida como a expressão, no espaço público, de uma reflexão individual ou coletiva sobre uma questão controvertida e concernente ao interesse ou ao direito de uma classe social, de um grupo ou mesmo da maioria. Era uma reflexão feita em público e por isso definia-se como uso público da razão e como direito à liberdade de pensamento e de expressão. Hoje, porém, os meios de comunicação estimulam o narcisismo e, em lugar de opinião pública, busca a expressão pública de sentimentos e emoções, de preferências, gostos, aversões e predileções, de maneira que o espaço privado ou da intimidade ocupa o lugar do espaço público.  Em lugar de opinião pública, tem-se a manifestação pública de sentimentos, preferências e aversões individuais.

Qual a consequência? O direito de cada um e de todos de opinar em público é substituído pelo poder de alguns para exercer esse direito, surgindo, assim, a expressão “formador de opinião”, aplicada a intelectuais, artistas e jornalistas ou profissionais dos meios de comunicação. O jornalismo deixa de ser informativo para se tornar opinativo e assertivo, detentor da credibilidade e da plausibilidade, tornando-se dos protagonistas da destruição da esfera da opinião pública.

A multimídia potencializa o fenômeno da indistinção entre as mensagens e entre os conteúdos. Como todas as mensagens estão integradas num mesmo padrão cognitivo e sensorial, uma vez que educação, notícias e espetáculos são fornecidos pelo mesmo meio, os conteúdos se misturam e se tornam indiscerníveis. Essa mescla dos conteúdos é agravada e reforçada pela encenação: programas educativos em forma de videogames, notícias em forma de espetáculo, transmissão de sessões do Poder Legislativo ou do sistema Judiciário como se fossem novelas, jogos esportivos como se fossem coreografias de dança, etc. A multimídia unifica num único universo digital manifestações culturais distintas no espaço e no tempo, diferentes por sua origem (classes sociais, nacionalidades, etnias, religiões, estados, centros de pesquisa etc.), diversas por seu conteúdo e finalidade (informação, educação, entretenimento, política, artes, religião), dando origem à cultura virtual. Todas as mensagens de todos os tipos são incluídas no meio por que fica tão abrangente, tão diversificado, tão maleável, que absorve no mesmo texto ou no mesmo espaço/tempo toda a experiência humana, passada, presente e futura, como num ponto único do universo.

Podemos focalizar a questão no exercício do poder pelos meios de comunicação tomando-o sob dois aspectos principais: o econômico e o ideológico.

  1. a) poder econômico

Do ponto de vista econômico, os meios de comunicação são empresas privadas, isto é, uma indústria (a indústria cultural) regida pelos imperativos do capital. São um negócio. E um negócio que, sob os efeitos da forma econômica neoliberal, passou por profundas mudanças estruturais, pois, como escreve o jornalista Caio Túlio Costa, “num processo nunca visto de fusões e aquisições, companhias globais ganharam posições de domínio na mídia. ” Além da forte concentração (os oligopólios beiram o monopólio), também é significativa a presença, no setor das comunicações, de empresas que não tinham vínculos com ele nem tradição nessa área. O porte dos investimentos e a perspectiva de lucros jamais vistos levaram grupos proprietários de bancos, indústria metalúrgica, indústria elétrica e eletrônica, fabricantes de armamentos e aviões de combate, indústria de telecomunicações a adquirir, mundo afora, jornais, revistas, serviços de telefonia, rádios e televisões, portais de internet, satélites etc.

Como observam vários jornalistas, houve não só a expansão da tecnologia analógica, mas, em menos de duas décadas, o salto para a tecnologia digital, a explosão da telefonia celular e a multiplicação das maneiras de comunicação com a possibilidade de interação entre redes de computador, acarretando, como também escreveu Caio Túlio Costa, “um aumento exponencial na velocidade de transmissão de dados, sob qualquer plataforma – celular, rádio, satélite, fibra de vidro ou mesmo fio de cobre” – os dados passaram a trafegar nas redes de comunicação passando de mil para milhões de bytes. A tecnologia do sistema digital modifica totalmente a forma da comunicação, pois pode integrar num único sistema de distribuição e recepção a televisão, a Internet, o cinema, a telefonia de voz e imagem, redes de dados, distribuído pela casa ou pelo escritório para cada aparelho receptor. Não causa espanto que companhias de produtos eletrônicos e empresas de telecomunicações estejam em disputa para controlar esse negócio de ponta a ponta e somente grupos poderosíssimos, resultantes de alianças entre empresas de comunicação de massa, operadoras de comunicação, provedores de serviços de internet e empresas de computadores estarão em posição de dominar os recursos econômicos e políticos necessários para a difusão da multimídia. “Assim, haverá um sistema multinacional, porém, com toda probabilidade, será decisivamente moldado pelos interesses comerciais de uns poucos conglomerados ao redor do mundo. ”

Do ponto de vista da democracia, a questão que se coloca, portanto, é saber quem detém o controle dessa massa cósmica de informações.  Ou seja, o problema é saber quem tem a gestão de toda a massa de informações que controla a sociedade, quem utiliza essas informações, como e para que as utiliza, sobretudo quando se leva em consideração um fato técnico, que define a operação da informática, qual seja, a concentração e centralização da informação, pois, tecnicamente, os sistemas informáticos operam em rede, isto é, com a centralização dos dados e a produção de novos dados pela combinação dos já coletados.

  1. b) poder ideológico

Do ponto de vista ideológico, o exercício de poder pela mídia se efetua por meio da ideologia da competência cujo modo de aparecer tem a forma anônima e impessoal do discurso do conhecimento.  E sua eficácia social, política e cultural funda-se na crença na racionalidade técnico-científica. Essa ideologia é inseparável da nova imagem da sociedade, definida como “sociedade do conhecimento”. Com essa expressão, pretende-se indicar que a economia contemporânea se funda sobre a ciência e a informação, graças ao uso competitivo do conhecimento, da inovação tecnológica e da informação nos processos produtivos e financeiros, bem como de serviços como a educação, a saúde e o lazer – em outras palavras, o conhecimento se tornou uma força produtiva, dando origem à expressão “trabalho imaterial”.

A ideologia da competência pode ser resumida da seguinte maneira: não é qualquer um que pode em qualquer lugar e em qualquer ocasião dizer qualquer coisa a qualquer outro. O discurso competente determina de antemão quem tem o direito de falar e quem deve ouvir, assim como predetermina os lugares e as circunstâncias em que é permitido falar e ouvir, e, finalmente, define previamente a forma e o conteúdo do que deve ser dito e precisa ser ouvido. Essas distinções têm como fundamento uma distinção principal, aquela que divide socialmente os detentores de um saber ou de um conhecimento (científico, técnico, religioso, político, artístico), que podem falar e têm o direito de mandar e comandar, e os desprovidos de saber, que devem ouvir e obedecer. Numa palavra, a ideologia da competência se opõe à democracia porque fere a igualdade e a liberdade ao instituir a divisão social entre os competentes, que sabem e mandam, e os incompetentes, que executam e obedecem.

III.

Indaguemos se a internet abre um campo verdadeiramente democrático e supera a ideologia da competência, em geral, e o autoritarismo sociopolítico brasileiro.

Com explica Paul Mathias[1], a internet é um ponto de convergência entre uma arquitetura industrial, múltiplas linguagens informáticas e um grande número de práticas intelectuais e cognitivas, econômicas, sociais, políticas, artísticas e de lazer. É uma organização de informações, parte da rede (a web) na qual o centro está em toda parte e a circunferência em nenhuma, disseminada numa infinidade de máquinas através do mundo. A internet é um enxame de redes privadas e públicas, institucionais, comerciais, governamentais, associativas conectadas em inúmeros “nós” que formam uma “nebulosa informacional amplamente insondável, diversamente organizada, às vezes aberta e disponível, mas frequentemente fechada e secreta[2]  e que aparece como uma comunicação tecnológica e universal entre as consciências que compartilham opiniões, pontos de vista, experiências, pensamentos, observações, hábitos e mesmo as banalidades da vida cotidiana ou um mundo de representações entrelaçadas, concordantes ou antagônicas.

Ora, a internet nasce numa infraestrutura econômica que ela mantém invisível, como ocorre em todas as esferas da sociedade capitalista. Mas não é assim que ela aparece, isto é, como um instrumento da economia ou uma estratégia econômica e política. Ela aparece como um ambiente universal de informação e comunicação globalmente uniforme, como capaz de trazer proveitos cognitivos, sociais, artísticos e políticos e como instrumento de pesquisa, de tal maneira que seu usuário “pode instantaneamente se beneficiar com todos os serviços que a potência de seu dispositivo técnico é suscetível de lhe dar”[3].

Na verdade, embora o uso das redes possa envolver usos técnicos diversos, nossa experiência reticular está circunscrita a um número restrito de programas aplicativos que permitem as múltiplas operações desejadas em um número limitados de gestos previstos e uniformes em todo o planeta, sem que tenhamos a menor ideia do que são e significam os protocolos informáticos que empregamos. De fato, “o objeto que cintila na tela” não é um texto ou uma imagem, mas “um sistema aplicativo opaco do qual percebemos apenas a interface que utilizamos”[4], sem jamais conhecer sua complexidade técnica, que permanece invisível sob a visibilidade contínua. Ignoramos os procedimentos operatórios que a criaram e a conservam, as leis de sua formação e configuração, sua arquitetura funcional. Em outras palavras, com a internet não sabemos onde estamos nem o que fazemos!

Mas não só isso. A internet nos coloca diante de uma contradição: de um lado, atravessando potencialmente todas as fronteiras territoriais e políticas, parece permitir uma distribuição de conhecimentos, dar fim às disparidades cognitivas e permitir aos grupos e aos indivíduos se apropriarem de seu ambiente econômico, social, cultural e político; de outro lado, porém, as práticas reticulares determinam lentamente o surgimento de um novo tipo de subjetividade que não se define mais pelas relações do corpo com o espaço e o tempo do mundo ou da vida, mas com a complexidade de relações que permanecem esparsas e fragmentadas. Operam a obediência e a sedução no campo mental, que, entretanto, estão disfarçadas numa pretensa liberdade de escolher obedecer. Estudos em neurologia revelam que, nos usuários, há diminuição das capacidades do lobo frontal do cérebro, onde se realizam o pensamento e os julgamentos, e há grande desenvolvimento da parte do cérebro responsável pelo desejo. Pensa-se menos e deseja-se muito e as empresas desenvolvem aplicativos para enfatizar, direcionar, induzir e estimular desejos. Curtir se tornou uma obrigação e o like se tornou a definição do ser de cada um. Existir é ser visto.

A contradição pode ser assim resumida: se levarmos em consideração o monopólio da informação pelas empresas de comunicação de massa, podemos considerar, do ponto de vista da ação política, a internet e as redes sociais como ação democratizadora, tanto por quebrar esse monopólio, assegurando a produção e a circulação livres da informação, como também por promover acontecimentos políticos de afirmação do direito democrático à participação; no entanto, os usuários da internet e das redes sociais não possuem o domínio tecnológico da ferramenta que empregam. Justamente porque são usuários não detêm poder sobre a ferramenta empregada, pois esse poder é, de um lado, o das empresas que determinam a forma e o conteúdo dos aplicativos e, de outro,  uma estrutura altamente concentrada, a Internet Protocol, com dez servidores nos Estados Unidos e dois no Japão, nos quais estão alojados todos os endereços eletrônicos mundiais, de maneira que, se tais servidores decidirem se desligar, desaparece toda a Internet; além disso, a gerência da internet é feita por uma empresa norte-americana em articulação com o Departamento de Comércio dos Estados Unidos, isto é, gere o cadastro da internet mundial. Assim, sob o aspecto maravilhosamente criativo e anárquico das redes sociais em ação política ocultam-se o controle e a vigilância sobre seus usuários em escala planetária, isto é, sobre toda a massa de informação do planeta.

Como observa Laymert Garcia dos Santos[5], o capital global privatiza as telecomunicações, coloniza a rede e faz o loteamento do campo eletromagnético, visando controlar o acesso ao chamado ciberespaço, não sob a forma da relação de compra e venda com seus clientes, e sim de fornecimento e uso. Trata-se, portanto, de um novo tipo de mercado em que o cliente, ou melhor, o usuário é transformado em mercadoria porque a estratégia de venda não consiste mais em vender um produto para o maior número de clientes, mas em vender no ciberespaço o maior número de produtos para um usuário. Donde a importância dada ao aumento crescente do tempo em que usuário permanece conectado a esse espaço, tempo que é capitalizado – o usuário julga estar em lazer, diversão, entretenimento, mas, na realidade, está realizando trabalho imaterial, gerando lucro ou mais valia para as empresas.  De fato, explica Garcia dos Santos, os provedores de acesso traçam o perfil do usuário em termos de preferências de acessos (escolhas e rejeições), idade, gostos de etc.; perfil que serve de base de cálculo para o valor de tempo de vida em termos de sua virtualidade de acesso e consumo. O indivíduo se reduz a um fluxo de dados que pode ser reorganizado e vendido de acordo com os interesses de potenciais anunciantes os quais, de posse dessas amostras compradas, invadirão os acessos dos indivíduos ao ciberespaço com propagandas já direcionadas para seus gostos. O controle é feito sobre senhas e acessos, organizados como amostras de bancos de dados, bases com que o mercado financeiro se articula com a especulação de possibilidades, isto é, do valor da informação, única mercadoria que conta, tornando-se a medida de todas as coisas, pois para o capital global a informação é a medida quantitativa de tudo.

Por Marilena Chauí, professora do departamento de Filosofia da USP, autora de Cultura e Democracia (Ed. Cortez) e A Nervura do Real (Companhia das Letras), entre outros.

[1]      Paul Mathias Qu’est-ce que l’Internet?, Paris, Vrin, 2009

[2]      Idem Ibidem p. 24.

[3]      Idem ibidem p. 26.

[4]      Idem ibidem p. 27.

[5]      Laymert Garcia dos Santos, Politizar as novas tecnologias: o impacto sociotécnico da informação digital e genética.

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