Martvs das Chagas: A igualdade como regra

A busca da igualdade entre brancos e negros deve ser uma tarefa de toda a sociedade, reconhecida e estimulada pelo Estado democrático

Ricardo Stuckert

Lula - Consciência Negra

O Dia da Consciência Negra é um momento de denúncia e de reivindicação de políticas públicas que o movimento negro brasileiro realiza, em busca da superação do racismo e da promoção da igualdade racial.

Neste 20 de novembro, rememoramos e celebramos a luta de Zumbi, líder do Quilombo dos Palmares, que por décadas resistiu com seu povo às atrocidades da escravidão e estabeleceu um referencial de luta pela liberdade no Brasil.

No próximo ano completaremos 130 anos de uma abolição inacabada, que relegou à base da pirâmide social toda a população aqui escravizada, com efeitos perversos sobre seus descendentes há muitas gerações.

Exemplo dessa herança escravagista: de cada 100 vítimas de homicídio no Brasil, 71 são negras, a grande maioria adolescentes e jovens, segundo o Atlas da Violência 2017, recentemente divulgado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Esse indicador escandaloso é a expressão mais cruel de uma sociedade desigual, que impôs aos negros, ao longo do tempo, os piores empregos, os menores salários, o menor acesso à educação, as piores condições de habitação e a maior vulnerabilidade aos diversos tipos de violência, particularmente contra as mulheres e os jovens.

Os dados demonstram também que a estrutura da desigualdade racial no Brasil tem raízes profundas, que resistem até mesmo a políticas clássicas de inclusão como as que foram implantadas nos governos do PT.

O governo do ex-presidente Lula, recorde-se, foi o primeiro a tratar como questão de Estado os temas do preconceito, do racismo, da intolerância religiosa e do reconhecimento aos quilombolas, num país socialmente doente, de dívida histórica para com a população negra.

Os pretos e pardos, que constituem 75% da população mais pobre do país, foram os mais beneficiados pelas políticas de geração de emprego e transferência de renda que tiraram mais de 36 milhões de brasileiros da extrema pobreza e levaram 40 milhões de pessoas à classe C.

Entre várias ações inclusivas, a Lei de Cotas permitiu que pretos e pardos sejam hoje a maioria dos alunos das universidades federais. Metade dos alunos do Prouni é de afrodescendentes.

Foi um grande acerto dos governos petistas, portanto, priorizar os mais pobres e socialmente vulneráveis com recorte racial. Ocorre que apenas 14 anos de tentativa de resgate da dívida histórica são quase nada frente a séculos de escravidão e à indiferença de sucessivos governos quanto à promoção da igualdade racial. Muito foi feito, mas muito há que se fazer.

Hoje, o aprofundamento da crise econômica —que afeta essencialmente os mais pobres, ou seja, a maioria da população negra- e o desprezo do atual governo por políticas de inclusão voltam a colocar a população negra no mesmo patamar do início da década passada.

E isso num momento em que a sociedade é abalada por uma série de manifestações regressistas, como a perseguição às religiões de matriz africana, o incentivo ao feminicídio e à LGBTfobia.

É urgente a retomada de políticas públicas afirmativas, aperfeiçoadas para evitar distorções ou limitações que aprendemos a reconhecer. A busca da igualdade entre brancos e negros deve ser uma tarefa de toda a sociedade, reconhecida e estimulada pelo Estado democrático.

Impõe-se, assim, a necessidade de criar condições reais que tornem justas as possibilidades dos indivíduos e que transformem a democracia formal em uma democracia plena, a igualdade formal em igualdade autêntica.

As mudanças necessárias não ocorrerão sob um governo impopular e promotor da maior retirada de direitos na história democrática, atingindo diretamente a população mais pobre e negra.

Elas virão da continuidade e fortalecimento da luta incansável do movimento negro e dos movimentos sociais por transformações profundas na estrutura da sociedade, em que a igualdade e a justiça sejam a regra, e não a exceção.

*Artigo inicialmente publicado no jornal “Folha de S. Paulo

Martvs das Chagas, sociólogo, é secretário nacional de Combate ao Racismo do Partido dos Trabalhadores; foi ministro da Igualdade Racial (2008, gestão Lula)

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