Para especialistas, permitir que igrejas questionem o STF amplia o preconceito

Proposta de autoria do tucano João Campos ampliaria poderes das igrejas. No entanto, beneficiadas seriam apenas as instituições religiosas com representação nacional. Iniciativa deixaria de fora religiões com menor adesão, como as de matriz africana

Foto: Lula Marques/Agência PT

STF

Pouco antes do início do recesso parlamentar, a Câmara dos Deputados instituiu uma comissão parlamentar para analisar uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que inclui entidades religiosas no rol de instituições que podem propor ação direta de inconstitucionalidade e ação declaratória de constitucionalidade ao Supremo Tribunal Federal (STF).

A proposta é de autoria do deputado federal da bancada evangélica João Campos (PSDB-GO). Para especialistas, a emenda é danosa porque, além de ampliar a interferência de entidades religiosas na organização do Estado, poderia  fragilizar ainda mais as religiões consideradas minoritárias, que têm menor adesão da população e são alvo de preconceito, como as de matriz africana.

“Essas instituições (contempladas pela PEC) não podem representar a totalidade da população, muito menos a maioria, uma vez que nem todas as denominações religiosas são organizadas em termos institucionais nacionais”, alerta o professor do Departamento de Filosofia da Universidade de Brasília (UnB) e integrante da Rede Nacional de Religiões Afrobrasileiras e Saúde Wanderson Flor do Nascimento.

“Um caso patente é o próprio conjunto das religiões de matriz africana, que não tem organizações nacionais, pelo menos não há uma organização nacional que consiga representar a diversidade dessas religiões e isso já é em si uma ameaça quando a gente pensa o histórico mesmo de agressões que essas religiões sofrem”, detalha.

Os ateus também seriam prejudicados, na avaliação do professor. “Em qualquer Estado não vivem apenas pessoas que têm crenças religiosas e as legislações não devem ser pensadas em termos religiosos. Isso fere a laicidade do Estado de diversas maneiras”.

O pesquisador da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (Fespsp) e doutorando em Direito Constitucional Luiz Felipe Panelli classifica a PEC como “inconveniente” e afirma que o texto não deveria ser aprovado.

Caso a mudança na Constituição aconteça, Panelli acredita que o STF aplicaria às organizações religiosas o entendimento dado às confederações sindicais que têm legitimidade para acionar o Supremo.

“Essas entidades entrariam como os chamados legitimados temáticos, ou seja, que só podem acionar o STF caso a lei que esteja contestando os diga respeito. Mas eu não tenho a menor dúvida que essas entidades iam entrar no Supremo questionando leis que contrariam seus dogmas”, analisa.

“No caso da aprovação de uma lei que descriminalizasse o aborto, por exemplo. Com essa PEC em vigor, elas diriam que um dos propósitos da religião é a defesa da vida, mas aí caberia ao STF antes discutir se realmente há pertinência temática e eu acredito que a resposta correta seja não”, detalha o pesquisador.

Retrocesso – Panelli classificou como retrocesso o uso de argumentos religiosos no debate no Congresso, sobretudo quando se trata de políticas públicas. “O pensamento religioso é pautado por dogmas e você sempre acaba impondo uma razão religiosa para pessoas que não são daquela religião”.

Para ele, o crescimento de bancadas religiosas no Legislativo é “muito ruim”, mas não é um fenômeno exclusivamente brasileiro.

“A gente vê muito isso no Estados Unidos, que é um país com tradição republicana e laicidade muito forte. Eu vejo com preocupação e me oponho, mas eu também não posso negar que existe uma certa legitimidade conquistada pelo voto”, defende.

Conservadorismo – Para Panelli, a população negra que, de acordo com as Nações Unidas é vítima de um racismo institucionalizado no País, vivenciou inúmeros retrocessos no primeiro período legislativo.

“É muito triste observar que muitos dos direitos sociais já conquistados em função de muitos movimentos históricos comecem a ser agora problematizados por esse Parlamento conservador, que é uma ameaça para direitos sociais, sobretudo aqueles que de alguma forma impactam a população negra desse país”.

Como caso emblemático, ele cita a aprovação da redução da maioridade penal pelo plenário da Câmara dos Deputados em primeiro turno.

“Qualquer estatística produzida por qualquer órgão de pesquisa desse país aponta para a prevalência negra nas prisões com ou sem julgamento, o que já indica uma espécie de preferência histórica marcada pelo racismo, pela imputabilidade das pessoas negras”, argumenta.

No entanto, contrariando os dados oficiais que apontam para um genocídio da juventude negra, os jovens são criminalizados pela sociedade e pelos parlamentares. “E esse é um elemento dos mais violentos que essa Câmara conservadora tem movimentado nos últimos dias. Isso não é a única coisa, nós podemos ver uma série de outras movimentações que acabam por vulnerabilizar a população negra”, aponta.

Por Cristina Sena, da Agência PT de Notícias

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