Roberto Tardelli: Cem dias de Lula preso e ataque à democracia

Cem dias que entrarão para a História do Brasil como um desses períodos em que os responsáveis passarão o resto da vida negando, explicando-se

MPSP

Roberto Tardelli

No mesmo dia em que Lula completou 100 dias preso, os jornais divulgam que o índice de mortalidade infantil no Brasil voltou a subir, algo que não ocorria desde 1990. Morrer de fome, como resumiu João Cabral de Mello Neto, é morrer um pouco por dia, à margem das políticas públicas, compensatórias ou não, que chegaram, em determinado instante, a excluir do currículo dos cursos de pediatria ensinamentos de como reidratar crianças e bebês à beira do morte por desidratação. Não foi coincidência.

Foi o preço.

Porém, os cem dias da prisão de Lula começaram bem antes. Eles se iniciaram quando Dilma Rousseff se reelegeu Presidenta da República, em uma apuração, terminada com uma virada espetacular, vinda do esquecido Acre.

Não deram descanso. O Brasil se transformava, no “Jornal Nacional”, em uma grande e infinita plataforma da Petrobras. Um juiz, que em qualquer outra democracia mais sólida no mundo já estaria fora do caso e gravemente punido, divulgava conversas privadas entre Dona Marisa e seus filhos, entre Dilma e Lula, conversas replicadas e editadas, dia após dia, construindo o vilão para o filme. Lula precisava ser preso, Dilma precisava ser deposta.

Formamos, doloroso dizê-lo, um país, cuja elite não suportou ver uma pequena ascensão social, que não suportou dividir os assentos dos aviões com a turma do andar de baixo, que não suportou ver negros médicos, engenheiros, advogados, psicólogos, professores, formando uma elite intelectual que somente conhecia a marginalidade e, de repente, formou-se ao lado dos filhos brancos e bem nascidos; parte decisiva de nossa elite bem nascida não suportava a homoafetividade ser tratada com respeito. Era coisa demais acontecendo em um país acostumado com uma estratificação social empedrada, estamentada. A avó e a neta nasceram para ser empregadas domésticas e quebrar essa lógica deixou apavorados e vingativos os senhores de sempre.

Dilma foi deposta naquele show de horrores que todos vimos. Zé Dirceu já havia sido atingido. Genoíno, alvejado. Nossas grandes figuras estavam sem forças ou retiradas do campo de batalha. Restava o maior de todos, Lula.

A matilha, mais experiente, saiu à caça. Lula se tornou a estrela de todos os telejornais, de todas as revistas semanais, exceção daquelas que resistiram e ainda resistem. Emissoras de rádio, jornais, todas as forças se juntaram para dois objetivos: criar um clima popular favorável à prisão de Lula, de um lado, e, de outro, legitimar um governo que entrara pela portas dos fundos.

Todavia, os fatos não ajudavam, na medida em que se tornou evidente que se buscava a qualquer custo uma justificativa para que Lula fosse o dono de um apartamento no Guarujá, na propina mais divertidamente insensata do planeta, em que subalternos teriam lucrado centenas de milhões de dólares e o líder, um apartamento de classe média localizado em uma praia meia-boca no Guarujá. Não havia mais como dizer-se que era dele o que nunca foi dele. Criaram-se convicções, criaram-se raciocínios tortuosos e em tempo recorde, esse, sim, a jato: foi condenado pelo juiz de piso, Juiz Marvel e sua condenação foi mantida pelo Tribunal.

Deles, distante, havia um país se dissolvendo. O Governo ilegítimo não conseguia e não consegue nenhum diálogo com o povo nem com a sociedade civil e o país foi se tornando uma terra de ninguém. Candidatos de ideários nitidamente fascistas se atropelaram, um deles, caricato e burro, raso e maniqueísta, capitão expulso do Exército, começou a crescer e aquilo que parecia uma anedota, começa a ganhar o caráter de dura realidade.

Cem dias e as liberdades democráticas se esvaem pelo ralo das conveniências e da necessidade de manter trancafiado Lula, que, por pior de tudo, por mais que apanhe, por mais que seja apedrejado todos os dias pela grande mídia, cresce e se mantém na liderança de todas as pesquisas de opinião.

Nessa caçada insana, que completou cem dias de encarceramento, pisamos em nossos jardins, viramos as costas a nossos irmãos, muito que perdemos:

01.    Destruímos a governabilidade, admitindo-se um governo espúrio e sabidamente ilegítimo;
02.    Destruímos todos os canais de comunicação com a sociedade;
03.    Despertamos uma sanha fascista, que nos transformou em um país de ódios abertos, preconceitos deslavados, de homofóbicas atitudes, de canalhices públicas, de delatores mendazes;
04.    Jogamo-nos ao fundo do poço dos atrasos sociais, congelaram-se investimentos públicos que seriam intocáveis por vinte anos;
05.    Perdemos emprego, perdemos direitos, perdemos comida!
06.    Criamos inimigos de ocasião, inimigos públicos construídos pela mídia e criamos deuses de barro, donos da moral e da honestidade, mas que que não resistem a mordomias oficiais;
07.    Rasgamos a Constituição e abolimos direitos que custaram séculos de desenvolvimento humanitário;
08.    Encarceramos muito mais do que em qualquer período da História, gente pobre e anônima, gente que deveríamos acolher e dar esperança;
09.    Perdemos a alegria, tornamo-nos um país triste e acabrunhado, com vergonha do que se passa por aqui.
10.    Aumentamos a mortalidade infantil.

São cem dias, que passaram arrastando, passaram destruindo pontes, quebrando princípios. Cem dias que entrarão para a História do Brasil como um desses períodos em que os responsáveis passarão o resto da vida negando, explicando-se, escondendo-se entre as sombras, rumorejando, dizendo que cumpriram a lei, mas sabem que a descumpriram, de propósito, por uma única prisão.

Lula, mesmo preso, escapa, sai da cela e vai para a História, onde tem sua liberdade assegurada.

Que esses cem dias lhes pesem como uma eternidade.

Por Roberto Tardelli, advogado Sócio da Banca Tardelli, Giacon e Conway, procurador de Justiça aposentado do MPSP

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