Artigo: A ciência agoniza entre a austeridade e o fisiologismo

A rigidez do arcabouço fiscal atenta contra a sua própria credibilidade, suscitando expedientes de flexibilização dos gastos, por vezes, voltados à realização de interesses eleitoreiros e fisiológicos, alertam Bruno Moretti e Jorge Messias em artigo

O descompromisso com regras é o comportamento sistemático daqueles que as constroem e juram defendê-las. No campo fiscal, a defesa oficial intransigente do teto se articula a expedientes diversos para contornar a regra.

O exemplo da PEC dos precatórios é ilustrativo, criando limite dentro do teto para pagamento dos passivos judiciais do governo. Na prática, autoriza-se o retardo da despesa, abrindo espaço para acomodar gastos de interesse eleitoral e de natureza fisiológica, como as emendas de relator, a pretexto de viabilizar a reforma do Bolsa Família. Estima-se que a medida permitirá a absorção de R$ 50 bilhões em novas despesas, deixando a conta das obrigações não saldadas para os próximos governos.

A tabela 1 traz as principais pressões para o orçamento de 2022, manifestando que os R$ 50 bilhões de espaço fiscal abertos pela limitação de precatórios não resolvem a questão, que tende a ser arbitrada pela coalizão governista.

Em resumo, o regime fiscal excessivamente rígido, sem cláusulas de escape relacionadas à arrecadação (como, por exemplo, a regra de gasto adotada na União Europeia), pressiona pela redução permanente e acíclica da despesa como proporção do PIB, de modo a ajustá-la ao teto. Por exemplo, o projeto orçamentário de 2022 sequer garantiu recursos suficientes para vacinar a população contra a Covid, estimando-se que faltam cerca de R$ 7 bilhões para essa finalidade. Por outro lado, a restrição artificialmente produzida reverte em decisão alocativa condicionada por interesses de curto prazo e pelo acesso diferencial aos fundos públicos por grupos específicos, não necessariamente compatíveis com o interesse coletivo.

Vale perceber que o regime fiscal herdado da era Temer está em contraposição, inclusive, às recomendações do FMI, que estimou forte efeito multiplicador dos investimentos, sobretudo no contexto de retomada econômica pós-Covid. O FMI vem assinalando a importância de regras fiscais que preservem investimentos públicos, capazes de estabilizar as economias.

A rigidez do arcabouço fiscal atenta contra a sua própria credibilidade, suscitando expedientes de flexibilização dos gastos, por vezes, voltados à realização de interesses eleitoreiros e fisiológicos. Vale retomar o orçamento de 2021 para ilustrar essa armadilha que, paradoxalmente, combina rigor fiscal e flexibilização seletiva dos gastos. Em particular, convém exemplificar com o caso do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT).

O FNDCT é um instrumento fundamental para o desenvolvimento científico e tecnológico e a inovação do país. O fundo viabilizou, para citar alguns feitos, o Reator Multipropósito Brasileiro, o Navio de Pesquisa Hidroceanográfico Vital de Oliveira, o supercomputador Santos Dumont, pesquisas que levaram à descoberta do pré-sal e projetos relacionados ao zika vírus.

A tabela 2 traz os dados orçamentários do FNDCT. A partir de 2018, cresce sistematicamente a parcela de valores vinculados a empréstimos, reduzindo-se os recursos primários, sujeitos ao teto de gasto e voltados, em grande medida, aos projetos não reembolsáveis.

Mas a esterilização de recursos dos fundos se dá, sobretudo, por meio da alocação crescente de valores vinculados ao fundo em reserva de contingência. Na prática, os valores não são executados, contribuindo para o cumprimento da meta de resultado primário e do teto de gastos. Em 2020, mais de R$ 4 bilhões não foram disponibilizados ao FNDCT.

Em 2021, o Congresso Nacional aprovou a Lei Complementar nº 177, de 2021, que proíbe alocação dos recursos do FNDCT em reserva de contingência. Após a aprovação da lei, iniciou-se um processo de liberação a conta-gotas dos recursos, concentrados nos valores reembolsáveis, não sujeitos ao teto de gastos. O orçamento de 2021 foi aprovado pelo Congresso Nacional com R$ 4,8 bilhões na reserva de contingência do FNDCT, tendo este valor caído para R$ 2,7 bilhões após a aprovação da LC 177, conforme o gráfico 1.

Recentemente, o Congresso alterou a lei de diretrizes orçamentárias, por meio do Projeto de Lei nº 12/2021, para prever que os recursos do FNDCT possam permanecer na reserva de contingência do orçamento. Ou seja, mesmo diante da LC 177, os valores não seriam disponibilizados ao fundo, inviabilizando sua aplicação no desenvolvimento científico e tecnológico e na inovação, conforme determina o ordenamento jurídico. Por que o governo e o Congresso alterariam uma lei ordinária, inserindo na LDO dispositivo que colide frontalmente com uma lei complementar?

A resposta apareceu dez dias após a aprovação da proposição: outro projeto de lei (Projeto de Lei nº 16/2021) previa o descontingenciamento de R$ 655 milhões do FNDCT, no entanto, no momento de sua votação, foi alterado pelo Poder Executivo, remanejando a suplementação para diversos órgãos, com vistas, inclusive, a realizar despesas de interesse do governo e de sua base parlamentar. Por exemplo, o Ministério do Desenvolvimento Regional, já fartamente aquinhoado nas questionáveis emendas de relator, ganhou mais R$ 250 milhões.

Resumindo: legislação ordinária (LDO), de forma absolutamente antijurídica, na prática, tornou sem efeito, para o ano de 2021, a vedação imposta em lei complementar. Dispensada a necessidade de garantir que o FNDCT disponha dos recursos a ele vinculados por lei, abriu-se espaço no orçamento para acomodar outras despesas.

O argumento de que o FNDCT tem baixa execução dos recursos e não requer ampliação de orçamento não faz sentido, porque 80% dos valores liberados em 2021 são em inversões financeiras, voltadas a empréstimos a empresas, e não para recursos não reembolsáveis, que teriam maior demanda e são considerados prioritários pela comunidade científica para execução da grande maioria dos projetos de pesquisa, sobretudo no contexto da pandemia de Covid-19.

É verdade que no PLN 16 foram destinados recursos à produção de radiofármacos, paralisada em função da redução de orçamento em 2021, afetando o diagnóstico de doenças e pacientes em tratamento contra o câncer. Mas o fato mostra o efeito combinado da austeridade e do clientelismo, já que há mais de R$ 16 bilhões no orçamento de 2021 para as emendas de relator. Para resolver o impasse, o PLN 16 previu R$ 63 milhões à Comissão Nacional de Energia Nuclear, o que, por óbvio, tornava o projeto urgente, motivando sua aprovação, mesmo diante da supressão dos recursos do FNDCT.

O exemplo revela com nitidez uma espécie de privatização em curso do orçamento, cujos gastos estratégicos – como os relacionados à saúde e ao desenvolvimento científico e tecnológico – ficam espremidos entre a austeridade e o fisiologismo. Em vez de financiar pesquisas de vacina contra a Covid ou estimular políticas de adensamento produtivo e tecnológico, o Brasil vai esterilizar R$ 2,7 bilhões do FNDCT, viabilizando gastos que refletem, em boa medida, interesses de curto prazo e eleitorais.

A pandemia reforçou a importância dos gastos com ciência e tecnologia nos países centrais. Segundo a OCDE, mais de 70% do financiamento dos gastos com P&D para enfrentamento à Covid teve origem no setor público. O já referido FMI estimou que um aumento permanente de 10% no estoque de pesquisa básica nacional pode incrementar a produtividade de um país em 0,3%. Contudo, nosso arcabouço de regras fiscais deprime continuadamente os gastos com ciência e tecnologia, criando-se, ademais, artifícios para canalizar recursos para ações sem retorno relevante do ponto de vista econômico e social.

A política (com p minúsculo) cuida de criar os atalhos em meio às restrições orçamentárias gestadas pela tecnocracia fiscal. Antitéticas, as duas andam de mãos dadas, esvaziando o orçamento de seu caráter republicano, sob a égide de um enquadramento que conjuga austeridade fiscal e perda de qualidade dos gastos públicos.

É a fórmula do atraso nacional com garantia de sucesso, que se repete como um ciclo infalível, para sabotar sistematicamente o país na criação das condições econômicas para um projeto de desenvolvimento nacional, que promova a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais e regionais.

Bruno Moretti é economista e assessor no Senado Federal.

Jorge Messias é ex-subchefe para assuntos jurídicos da Presidência da República e coordenador do NAPP Estado, Democracia e Instituições da Fundação Perseu Abramo e o PRTB do PT.

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