Depois da cloroquina, ‘macarrão’ é a receita contra a carestia

Um dos primeiros atos do governo foi a extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Ministro da Economia abriu portas para exportações enquanto outros países contiveram seus estoques. Impacto maior é sobre a população mais pobre. Mercadante diz que presidente cometeu crime

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Governo deixou o custo de vida explodir

A combinação perversa entre a visão distorcida da facção “ideológica” do desgoverno Bolsonaro sobre os movimentos populares e o neoliberalismo selvagem do ministro-banqueiro da Economia, Paulo Guedes, recai como uma maldição sobre as populações de mais baixa renda do Brasil. Ao desemprego e à queda brutal da renda, soma-se uma inflação descontrolada e cruel que é mais ampliada exatamente no índice dos produtos da cesta básica. É o que os Chicago boys de Guedes chamam de “inflação de pobre”.

Se a facção bolsonarista “de raiz” fez o presidente publicar, já no primeiro dia de mandato, a Medida Provisória 870, que extinguiu o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), o laissez-faire de Guedes o fez corromper os estoques reguladores de grãos e cereais. Com isso, transformou um instrumento de garantia da segurança alimentar da população em meio de lucro fácil para os barões do agronegócio predatório.

O processo começou com a ponte para o futuro do usurpador Michel Temer e cúmplices, que reduziram estoques médios mensais de arroz de 1.629 toneladas em 2015 para meras 88 toneladas em 2016, quando o golpe foi desfechado contra a presidenta legitimamente eleita Dilma Rousseff. Em 2017, plena era golpista, a média mensal caiu para 30 toneladas. Paulo Guedes, com o assentimento de seu chefe, reduziu ainda mais o estoque – para 22 toneladas mensais em 2019.

“O que o governo Bolsonaro está fazendo é um crime. A preocupação é apenas em atender o mercado externo, não existe nenhum plano de atender o consumo interno e matar a fome do povo”, denuncia Aloizio Mercadante, presidente da Fundação Perseu Abramo.

Este ano, enquanto outros países produtores de arroz continham seus estoques para evitar a explosão de preços internos e o real caía vertiginosamente no mercado cambial, as portas foram abertas para fora. Principalmente para a principal compradora – Venezuela, que arrematou 20 de cada 100 quilos embarcados por produtores do Brasil.

Segundo o sistema de dados Comex Stat do Ministério da Economia, de janeiro a agosto foram exportados 1,15 milhão de toneladas de arroz – o equivalente a 230 milhões de sacos de cinco quilos, ou praticamente um pacote para cada brasileiro. Alta de 81,4% na comparação com o mesmo período de 2019. Apenas em agosto, as vendas ao exterior cresceram 93% sobre igual período do ano passado. Já as importações somaram 373,3 mil toneladas, queda de 26% ante o mesmo período do ano passado.

Com as exportações já chegando a US$ 407,2 milhões (R$ 2,165 bilhões) este ano, o Brasil está bem perto do recorde histórico registrado em 2012, quando foram embarcados US$ 443 milhões (R$ 2,356 bilhões) em arroz no mesmo período de oito meses. A diferença é que, em 30 de junho de 2012, o estoque nacional de arroz em casca era de 5,3 milhões de toneladas, segundo a Pesquisa de Estoques do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

O milho vai na mesma batida. Relatório semanal da Secretaria de Comércio Exterior do Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços aponta que nos quatro primeiros dias úteis de setembro, o país exportou 1.890.776,1 toneladas de milho não moído, 15% acima do registrado na última semana de agosto e já em torno de 29% de todo o contabilizado nos 21 dias daquele mês.

Com isso, a média diária de embarques está em 472.694 toneladas, patamar 53% maior do que a média do mês passado. Em comparação ao mesmo período do ano passado, a média de exportações diárias ficou 54% maior do que as 306.770,1 de setembro de 2019.

Cesário Ramalho da Silva, presidente da Associação Brasileira dos Produtores de Milho (Abramilho), estima que, para este ano, são cerca de 30 milhões de toneladas já comprometidas para exportações embarcadas até o final de 2020. Esse volume pode crescer ainda mais, já que há apetite internacional pelo grão.

Em entrevista concedida à ‘TV 247’ nesta quinta (10), o ex-ministro Aloizio Mercadante afirmou que o desgoverno Bolsonaro, além de acabar com os estoques de arroz e incentivar as exportações, também descumpriu a lei regulatória que garante segurança alimentar para a população. “O que o governo Bolsonaro está fazendo é um crime”, denunciou ele, para quem “a preocupação é apenas em atender o mercado externo, não existe nenhum plano de atender o consumo interno e matar a fome do povo”.

Mercadante, que foi ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação, ministro da Educação e ministro da Casa Civil de Dilma Rousseff, referia-se à Lei nº 11.346, Lei Orgânica para a Segurança Alimentar e Nutricional. Sancionada em 15 de setembro de 2006 pelo presidente Luis Inácio Lula da Silva, a lei foi gerada no Consea, recriado por Lula ainda em 2003 via Decreto nº 4.582, depois confirmada pela Lei 10.683, de maio de 2003.

“Estamos enfrentando uma situação dramática no Brasil”, alertou o agora presidente da Fundação Perseu Abramo, acrescentando que outros itens essenciais da cesta básica, como feijão e farinha de trigo, também já estão sem estoque. Ele lembrou que 90% da área plantada hoje no Brasil é de soja e milho, “esmagando a agricultura familiar na produção de itens que são essenciais, como arroz e feijão”.

Segundo Mercadante, o governo jogou nos braços do mercado a regulamentação do preço da cesta básica. “Então o povo ficou entre o pescoço e a guilhotina. As pessoas são obrigadas a comer e não tem oferta, volume, estoque ou importação desses alimentos”, concluiu.

Inflação dos alimentos vai perdurar

Uma pesquisa da Associação de Consumidores Proteste aponta que já em maio os aumentos de preços dos alimentos chegaram a até 106% em supermercados da cidade de São Paulo, na comparação com 2019. Naquele momento, o feijão registrava aumento de 66% em relação a 2019. O arroz, 13% e o leite, 11%.

Em agosto, quando considerados os últimos 12 meses, os aumentos de preço nos alimentos foram de 48,3% no feijão, 25,5% no arroz, 18,7% no leite e 23,5% no óleo de soja. Ou seja, os preços subiram acompanhando a pandemia de Covid-19. E muito mais do que a inflação oficial acumulada no período: 2,44%.

Outro levantamento, divulgado na sexta (4) pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudo Socioeconômicos (Dieese), mostrou que os preços médios de produtos da cesta básica aumentaram, em agosto, em 13 das 17 capitais pesquisadas. O estudo também concluiu que os produtos mais básicos para o dia a dia do brasileiro aumentaram muito acima da inflação.

O Dieese também levantou o dado de que o trabalhador que recebe um salário mínimo compromete, em média, 48,85% da sua receita líquida apenas para comprar os alimentos básicos. Na prática, o gasto chega a 68% da renda com alimentação. Separados os dados por região, a situação é ainda pior em Minas Gerais e Pernambuco, onde o comprometimento da renda com alimentação ultrapassa os 70%.

Em entrevista ao ‘El País Brasil’, pesquisadores afirmaram que, pelas sinalizações do governo e do mercado, não há indícios de que a alta dos preços arrefecerá nos próximos meses. “Os alimentos devem continuar mais caros até o fim do ano”, projeta Felippe Serigati, professor de economia e pesquisador da FGV Agro.

Heron do Carmo, economista da Universidade de São Paulo (USP) especializado em inflação, diz que a única forma de a tendência de avanço nos preços dos alimentos não se repetir em 2021 é se o governo adotar ações imediatas, como aumento de importações e produção de alimentos essenciais. “Para as pessoas de classe média, esses produtos pesam relativamente pouco. O ônus da inflação dos alimentos sempre recai nas famílias mais pobres”, explica.

O economista ainda enxerga “efeito mais político que prático” nos apelos de Bolsonaro aos empresários por “patriotismo”, e rechaça a tese de que o ajuste fiscal seria a solução para conter o aumento de preços. “Ajuste fiscal não vai resolver o problema. É uma medida para combater a inflação como um todo e tem efeito de longo prazo.”

A ponderação é corroborada pela economista Laura Carvalho (FEA-USP), que também não interpreta a alta de alimentos como “um processo inflacionário generalizado” cujo reparo passe pela urgência do ajuste nas contas públicas. “Não faz sentido usar a inflação de alimentos como evidência de que é necessário desaquecer uma economia que já está em frangalhos”, argumenta a professora.

“Vai faltando política de governo, política de segurança alimentar. Tem uma Conab (Companhia Nacional de Abastecimento) que não está mais mantendo estoques mínimos, reguladores. E quem está pagando a conta mesmo é a família de baixa renda”, critica a economista Patrícia Costa, do Dieese, à ‘Rede Brasil Atual’. Ela lembrou que, antes da pandemia, os mais pobres sofreram com a alta do gás. Agora, com a falta de uma política de alimentação.

Para supermercados, governo está “desesperado”

Para os executivos de supermercados que estiveram nesta quarta (9) com Bolsonaro, a cobrança da Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), do Ministério da Justiça, para que o setor explique o aumento nos preços dos alimentos é “um ato de desespero”. João Sanzovo Neto, presidente da Associação Brasileira de Supermercados (Abras), tomava cafezinho com Bolsonaro quando o órgão anunciou a notificação da entidade.

Constrangido pela facada nas costas, Sanzovo piorou a situação ao conversar com jornalistas na saída do Palácio do Planalto, sugerindo para os brasileiros uma saída à Maria Antonieta, aquela do “não podem comer pão, comam brioches”.

“Vamos promover o consumo de massa, macarrão, que é o substituto do arroz. E vamos orientar o consumidor que não estoque arroz”, pregou o representante patronal, sem explicar como o consumidor de baixa renda vai estocar um produto que ultrapassa a faixa dos R$ 40,00 o saco de cinco quilos e cujo volume por compra já começa a ser regulado nos supermercados de alguns estados.

O presidente da Abras disse ainda que os mercados não são “os vilões” da inflação da cesta básica. “É a lei de mercado, é oferta e procura. Se você tem menos produtos sendo ofertados, e no caso foi exportado, muitos dos nossos produtos estão sendo exportados, o produtor prefere exportar porque o câmbio está alto e tem uma receita maior do seu produto”, justificou.

No que depender do setor produtivo, o preço do arroz deverá seguir alto, apesar da isenção de tarifa de importação para alguns milhares de centenas de toneladas. O presidente da Federação dos Arrozeiros do Estado do Rio Grande do Sul (Federarroz), Alexandre Velho, disse à ‘Reuters’ que a entidade foi surpreendida com a demanda do Ministério da Agricultura sobre a isenção da Tarifa Externa Comum (TEC), visto que o tema havia sido discutido recentemente.

“A Câmara (setorial) nacional tratou desse assunto na semana passada e foi unânime contra a isenção da TEC”, afirmou. Mesmo com a decisão da Camex, ele avaliou que não há espaço para queda de preço no Brasil, tanto pelo nível de restrição da oferta quanto pelo calendário de safra dos fornecedores que seriam beneficiados com a medida.

Gabriel Viana, analista da consultoria Safras & Mercado, explicou que o Brasil já iniciou a temporada deste ano com estoques curtos devido a problemas climáticos no ciclo anterior. Em meados de março, época de colheita no Rio Grande do Sul, a corrida pela aquisição do produto causada pelas incertezas referentes à pandemia impediu o tradicional recuo nos preços que deveria ocorrer.

“Essa preocupação com a segurança alimentar aconteceu em diversos países do mundo e os preços internacionais do arroz aumentaram. Para o Brasil, o câmbio tornou as exportações mais atrativas e ainda temos capacidade para exportação”, disse Viana. “Isso quer dizer que os preços podem subir ainda mais, é provável que subam. Essa retirada da TEC não vai ter impacto significativo”, acrescentou.

Da Redação

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