Depois de um tempo de dor, humilhação e injustiça, um choro de alegria

Ao presidente Lula e sua família: que toda injustiça pelas quais passaram seja revertida em saúde, amor e alegria, afirma Cláudia Troiano, do Instituto Lula, em artigo

Ricardo Stuckert

Lula

Hoje o choro é de alegria. Que fique claro, não é sobre mim. É sobre muita gente, mas principalmente sobre um homem e sobre um tempo de dores, humilhações, constrangimentos, injustiças e lutas, muitas lutas. Este tempo é muito anterior, mas vou escrever a partir da manhã de sexta-feira, dia 4 de março de 2016. Foi o dia em que a Polícia Federal, enviada por Sergio Moro, fez operações de busca e apreensão no Instituto Lula, e ao mesmo tempo, batia à porta do ex-presidente e sua esposa, dona Marisa. Também acordava diretora, diretores e funcionários do instituto. Os policiais, sempre com roupas de guerra e armados até os dentes, assustaram as crianças, netos do presidente Lula, à medida que andavam mexendo em tudo nos lares dos filhos e noras. Não pouparam nem os tablets que as crianças usavam para joguinhos e filmes. Tudo às 6 da manhã.

Nesse mesmo dia, Lula sofreu uma condução coercitiva, sem nunca ter se negado a depor. Eu, por outro lado, tive uma arma, apontada para a cabeça quando atendi ao telefonema de uma amiga de trabalho, preocupada comigo. “ Desliga essa p…aqui é a polícia federal” gritou o homem fardado. E recolheu meu telefone. Todas as gavetas no chão, todas as salas revistadas, todas as pastas mexidas, todos os computadores levados. Fotos arrancadas de porta-retratos. Até no forro entraram. Muitas viaturas, muitos homens. Um procurador teve a audácia de perguntar a mim e a uma companheira de trabalho quando eu havia arrumado as pastas de discursos. Queria saber se eu tinha arrumado na véspera.

“Tive uma arma apontada para a cabeça quando atendi ao telefonema de uma amiga de trabalho, preocupada comigo. ‘Desliga essa p… aqui é a Polícia Federal’, gritou o homem fardado. E recolheu meu telefone”

Em nossa rotina, arquivávamos todos os documentos que o presidente utilizava nas viagens, incluindo o plano, roteiro, subsídios e discursos feitos. Os discursos lidos pelo presidente, manuseados por ele e com suas anotações tinham e têm para nós um valor histórico. O procurador não acreditou. Achou que inventamos os discursos para justificar as muitas palestras proferidas por Lula, no Brasil e no exterior, desde que deixou a Presidência da República, no final de 2010. Levaram também todas as pastas com os discursos arquivados.

Ao final do dia, parte de nossa equipe reuniu-se na sala da diretoria, incluindo os que tinham ido ao aeroporto, onde o presidente iria depor. Estávamos apreensivos, tristes e muito cansados. O presidente, já em seu apartamento, falou conosco por telefone. Lembro que ele disse: “Tem nada não, vamos aguentar firme que vamos passar por isso”.

Coletivos entregam abaixo-assinados pela liberdade de Lula . Foto: Divulgação

Passados dois meses, um juiz da 10ª Vara Federal de Brasília determinou a suspensão das atividades do Instituto Lula. Recorremos, resistimos e depois de uma semana, o tribunal determinou a volta imediata das nossas atividades.

Em março de 2016, mais precisamente no dia 17, o presidente Lula foi nomeado ministro-chefe da Casa Civil. Manifestantes estimulados pela oposição e pela mídia conservadora, que defendiam o impeachment da presidenta Dilma, foram às ruas de diversas capitais do Brasil. Em Brasília e em São Paulo o clima ficou muito tenso. Poucos, mas muito violentos, manifestantes exaltados foram à porta do Instituto. O presidente foi embora sob chutes e socos no seu carro. No dia seguinte, o ministro Gilmar Mendes suspendeu a nomeação do presidente Lula. E a partir daí vocês conhecem a história que culminou em golpe.

“Houve momentos em que não saíamos desacompanhados. Chegou ao cúmulo de um homem mostrar sua masculinidade tóxica, baixando as calças na rua humilhar uma companheira”

Durante muito tempo, os colaboradores do Instituto Lula passaram por situações muito delicadas. Houve um tempo em que, de cada dez ligações, sete eram trotes e ameaças. Por um longo tempo, os carros passavam gritando palavras ofensivas e houve até bombas jogadas. Estranhamente, até hoje, o agressor continua no anonimato. Tivemos momentos em que não saíamos do trabalho desacompanhados. No restaurante vizinho, onde sempre almoçamos, membros da equipe foram por mais de uma vez hostilizados, até chegar ao cúmulo de um homem mostrar toda sua masculinidade tóxica, baixando as calças na rua, em frente ao restaurante, para agredir e humilhar uma de nossas companheiras. Mas nunca desistimos. Sou grata aos que estiveram e ainda estão conosco, um segurando a mão do outro, como fazem os companheiros.

Quando imaginávamos que tínhamos alcançado o limite das agressões, fomos surpreendidos com manifestações na porta do hospital em que dona Marisa ficou por dez dias. Nas redes, alguns (poucos) médicos falavam de resultados de seus exames com sadismo e falta de ética. Era um ódio plantado que não fazia questão de ser abafado, não era escondido. No velório lotado em São Bernardo do Campo, a cerimônia foi estruturada, de início, para que as pessoas não tivessem acesso físico ao presidente e sua família.

Dia que marcou a prisão política, em abril de 2018. Foto: Paulo Donizetti de Souza

Quando ele viu, nos chamou e disse: “por que estas grades”? Respondemos que era para ele ter um pouco de privacidade. Ele disse muito firmemente. “Não quero privacidade. As pessoas vieram me dar carinho, me trazer conforto e eu quero receber. As pessoas querem me abraçar, eu quero o abraço delas.” E assim foi feito. Foi tudo muito doloroso. Dona Marisa andava muito triste com os ataques à sua família, especialmente aos seus filhos. Tristeza mata.

No final de março de 2018, fizemos a caravana do Sul. Percorremos de ônibus várias cidades e em todas elas enfrentamos o ódio de fascistas, ruralistas e defensores de Bolsonaro. Um povo irracional que atacava nossos ônibus com pauladas, barras de ferros, pedras e ovos. A violência foi tanta, que num determinado momento, os motoristas, muito inseguros, não queriam mais continuar a viagem. Quase no final, nossos ônibus foram atacados a tiros. Ninguém se feriu fisicamente, mas na alma ficaram as marcas. Obviamente que o presidente Lula não se abateu. Indignado, enfrentou o ódio, foi firme.

Lula contou com o apoio de trabalhadores, de sindicalistas, de valorosos companheiros do MST, de nossa militância, que em todas as cidades nos protegeu e garantiu que nosso líder falasse com seu povo. No ônibus o presidente dizia: “Vamos ter calma, mas vamos passar; não existe a menor possibilidade de eu desistir da agenda”. E assim foi. Quando acabamos a última agenda na praça lotada em Curitiba, estávamos todos exaustos. Mas orgulhosos, choramos. O enfrentamento tinha valido.

Mal tínhamos voltado do Sul, no dia 5 de abril, Moro decreta a prisão de Lula. Num final de tarde movimentado, com muitas agendas acontecendo, em instantes, manifestantes contrários e a favor da prisão chegam na sede do Instituto Lula. Confusão geral. De lá, o presidente segue para o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC de onde só sai no dia 7 para se entregar à PF.

Na manhã do dia 7, quando dona Marisa faria 68 anos, dom Angélico Sândalo chega para fazer uma celebração. Ao recebê-lo, me abraçou e disse com a força afetuosa de sempre: “Sejam fortes; confiem no amor e na justiça de Deus; diga isso para nossos irmãos do Instituto”. E a cerimônia aconteceu com a presença de muitos amigos, triste e com muito choro. Depois, o homem, imortalizado por suas ideias, era carregado nos braços do povo, de quem recebia flores. Uma cena épica.

Entre milhares de abraços e muito choro, Lula faz sua última refeição em família, antes de se entregar. A comadre Inês e sua família prepararam com carinho o que eles comeram. Um abraço comovente e comovido unia de novo, aquela família já tão machucada. Filha e filhos, noras, netos, netas choraram. A pequena bisneta jogava beijo pro biso. Esse encontro fez chorar os poucos que presenciaram a cena. De longe, num cantinho, chorei também.

Nos 580 dias de sua prisão brotavam ideias: vigília permanente na frente da PF em Curitiba que recebia gente anônima e famosa daqui e de fora, festivais Lula Livre pelo Brasil, manifestações, comitês nacionais e internacionais com atividades permanentes, leilões, bazares, vigílias nas capitais, músicas, faixaços, almoços coletivos, festas de aniversário temáticas por todo canto, central de cartas, bordadeiras do Brasil todo bordaram As Linhas do Horizonte. Um tapete de 100 metros bordado a muitas mãos, distantes umas das outras, foi feito para que Lula pisasse ao sair da prisão. E assim fizemos. Ao chegar em São Bernardo do Campo, estava lá, no chão, o tapete que o devolveu ao seu povo. Lula vale a luta.

No Instituto Lula, quase 35 mil cartas foram lidas e respondidas por uma equipe gigante que variava entre três e cinco mulheres. Gente de dentro e de fora se emocionava a cada carta. Separavam, liam e choravam com o conteúdo e com a caligrafia de uma mão trêmula, com esperança inabalada

Vale destacar ainda a defesa incansável do presidente e a participação de vários grupos de advogados, juristas e acadêmicos que também se mobilizaram para denunciar a farsa montada. No instituto, quase 35 mil cartas foram lidas e respondidas por uma equipe gigante que variava entre três e cinco mulheres. Gente de dentro e de fora se emocionava a cada carta lida. Os filhos do presidente, as noras, amigas e amigos com filhos que o Lula viu nascer abriam, separavam, liam e choravam, ora com o conteúdo, ora com a caligrafia de uma mão já trêmula, mas com uma esperança inabalada.

O presidente recebia notícias de tudo o que acontecia aqui fora. E respondia sempre que possível. Depois de alguns lulaços, gravamos um vídeo e mandamos para ele. O recado para Fabiano Leitão, o trompetista, chegou. Ao saber da gratidão de Lula e ao saber do recado enviado, o trompetista chorou.

“Um Lula abatido e sufocado promete ao neto, antes de ser cremado, que provaria sua inocência. Disse com que não precisava ficar triste nem se envergonhar, porque o vô não era ladrão. E de novo choramos”

Enquanto isso, a vida seguia e o sorridente Vavá, irmão do presidente, faleceu no final de janeiro de 2019. As tragédias vividas pela família, revelaram, entre outras coisas, o quão mesquinha e baixo nível é a turminha de Curitiba. Ao comentar sobre a possibilidade de Lula comparecer ao velório Dallagnol teria dito: “Acho uma temeridade ele sair”. Mais tarde, a proposta veio quase em tom de deboche. O corpo de Vavá deveria ir para um batalhão e assim o irmão, preso injustamente, poderia se despedir. Lula e a família de Vavá não aceitaram a proposta indecente. No entanto, parte dos familiares e amigos tinham esperança, até os últimos minutos antes do sepultamento, de que Lula pudesse chegar. A negativa da Justiça tornou mais triste o que já era demasiadamente triste.

Numa sexta-feira de manhã, a maior das tristezas nos abateu e todos choramos copiosamente a perda física do pequeno Arthur. No sábado, dia 2 de março de 2019, sob forte esquema de segurança, o presidente entrou na sala onde estavam aproximadamente 30 pessoas, na quase totalidade, familiares. Impossível descrever a dor, a emoção e o despedaçamento dos presentes. Um Lula abatido, engasgado e sufocado promete ao neto, antes de ser cremado, que provaria sua inocência. Disse com todas as letras que o menino não precisava ficar triste e nem se envergonhar, porque o vô dele não era ladrão. E de novo choramos.

Em novembro de 2019, Lula é solto e sábado, dia 9, uma multidão vai recebê-lo de volta no mesmo lugar de onde ele saiu para se entregar: o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. Em um dia organizamos o ato. A direção do sindicato se empenhou para que tudo acontecesse da melhor forma possível. Artistas se apresentaram voluntariamente, como em todos os eventos da campanha Lula Livre. Os militantes e amigos encheram a quadra e o entorno da sede e Lula recebia todo o afeto e amor merecidos.

Aniversário de Lula em 2018, na Vigília Lula Livre, que durante 580 dias não arredou o pé da porta da PF, em Curitiba. Foto: Divulgação

Uma semana depois, no dia 17, é realizado o Festival Lula Livre no Recife. O evento, organizado enquanto Lula ainda estava preso, virou um palco de emoção e agradecimento. Em seu estado natal, Lula falou para mais de 200 mil pessoas, que desde às 10 da manhã esperavam pela volta de seu filho amado.

No dia 18 de dezembro, no Rio de Janeiro, no Circo Voador (espaço de luta e resistência) lotado e sob as bênçãos de Beth Carvalho, Lula encontra-se com artistas. Em seu discurso agradeceu a todos que se mobilizaram de todas as formas para que ele pudesse estar de volta ao convívio do povo brasileiro.

Um outro encontro estava marcado para a segunda quinzena de março de 2020, com 120 artistas em São Paulo. O presidente combinou com Haddad que queria agradecer a todos que deram sua arte e seu tempo nas lutas por Lula Livre que aconteceram em vários cantos do Brasil. A pandemia chegou e tivemos que suspender o encontro, que tenho certeza ainda vai acontecer. Antes de ser levado a Curitiba, o presidente lançou um livro, cujo título era quase uma profecia: A verdade vencerá: o povo sabe por que me condenam.

No dia 24 de março, o STF considerou o ex-juiz Sérgio Moro suspeito em relação aos processos contra o ex-presidente e na última quinta, dia 14, o STF decidiu derrubar as condenações impostas pela operação Lava Jato. Lula está livre, Lula é inocente e Lula é elegível. Agora o choro é de alegria. Ao presidente Lula e toda sua família, toda minha consideração. Que toda injustiça pelas quais vocês passaram seja revertida em saúde, amor e muita alegria.

Cláudia Toriano, do Instituto Lula

Originalmente publicado na Rede Brasil Atual

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