Entidades de saúde cobram quebra de patentes de vacinas

Grupo de organizações enviou carta ao presidente da Câmara pedindo rapidez na aprovação do PL 1462/2020, que prevê licenciamento excepcional de remédios e insumos usados no combate à pandemia do coronavírus

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Entidades pedem patentes livres para vacinas contra a Covid-19.

Na mesma semana em que a 73ª Assembleia Mundial da Organização Mundial da Saúde (OMS) aprovou resolução reconhecendo a imunização extensiva contra a Covid-19 como um “bem público mundial” e defendendo o licenciamento de medicamentos e insumos, um grupo de 84 especialistas enviou carta ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia, pedindo rapidez na votação de um projeto de lei com o mesmo teor.

O Projeto de Lei (PL) 1462/2020 propõe que, durante a atual crise e em emergências globais futuras, haja o licenciamento compulsório, ou a possibilidade de que outras empresas além da criadora do produto possam fabricá-lo e comercializá-lo, garantindo o suprimento em um momento de alta demanda. A proposta possui requerimento de urgência, mas depende de decisão de Maia para ir à votação.

“Esse projeto certamente promoverá o interesse público ao garantir o acesso a fontes adicionais de suprimentos e de produtos de saúde mais acessíveis”, afirma o documento, organizado pelo Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual (GTPI), coletivo de organizações da sociedade civil que defende a quebra de patentes em situações de emergência sanitária.

Segundo a carta, “impedir monopólios é uma medida estratégica e importante, fundamental para aliviar a pressão sobre os sistemas de saúde sobrecarregados”. Para os especialistas, “a aprovação do projeto promove os princípios de inovação para todos, acesso para todos, solidariedade, cooperação global, boa governança e transparência”.

A carta diz que “qualquer iniciativa que torne as licenças compulsórias mais rápidas, simples e menos incertas quanto a seus resultados serão ainda mais úteis em uma pandemia como a de Covid-19, onde é importante agir de maneira rápida e decisiva”.

A Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), braço latino-americano da OMS, corrobora o documento, que teve a adesão de especialistas em direito, saúde, comércio e propriedade intelectual de 28 países, incluindo professores e cientistas ligados a instituições como as universidades de Harvard (EUA), York e Leeds (Reino Unido).

Pesquisadores e professores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e várias universidades brasileiras também assinam a carta, assim como o indiano Anand Grover, relator especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para a Saúde entre 2008 e 2014.

Setor privado reage à proposta

A Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma), que reúne os fabricantes de remédios, reagiu afirmando que o licenciamento compulsório “representa uma grande ameaça à pesquisa e ao desenvolvimento de novos tratamentos, por inviabilizar a sustentabilidade da pesquisa científica”. A entidade acredita que haveria prejuízo à credibilidade do Brasil, pelo fato de a medida ir contra acordos internacionais dos quais o país é signatário.

Os defensores da quebra de patente rebatem o argumento dizendo que a própria OMC (Organização Mundial do Comércio) tem dispositivos que possibilitam esse tipo de medida em momentos emergenciais. Além disso, a emissão de uma licença compulsória não expropriaria os direitos de propriedade do titular da patente.

Para o coordenador do Grupo de Trabalho em Propriedade Intelectual da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (GTPI/Rebrip), Pedro Villardi, o Parlamento brasileiro tem a oportunidade de colocar em prática a resolução negociada na OMS. “Na semana do maior evento de governança global em Saúde, a Assembleia Mundial de Saúde (AMS), o Brasil tem a oportunidade de liderar pelo exemplo”, prega o cientista.

Segundo Villardi, “o presidente da Câmara já tem em suas mãos um requerimento de urgência solicitado por líderes de 16 partidos. Hoje ele está recebendo uma carta assinada por mais de 80 especialistas que reforçam a legitimidade, a importância e a urgência do PL 1462/2020. Cabe a ele agora agir em defesa da saúde da população. O mundo inteiro está assistindo”.

Fundada por Oswaldo Cruz, a Fiocruz (foto), uma das mais importantes instituições de pesquisa e desenvolvimento em ciências biológicas e de saúde pública do mundo, assina o pedido de patentes livres para a vacina contra a Covid-19. Foto: Peter Ilicciev.

Projeto multipartidário

O PL1462/2020, que propõe alterar o artigo 71 da Lei Brasileira de Patentes, foi protocolado em 2 de abril por um grupo de 11 deputados federais de oito partidos, entre eles os petistas Alexandre Padilha (SP) e Jorge Solla (BA). Desde então vem arregimentando o apoio das entidades da área de saúde.

O Conselho Nacional de Saúde (CNS) publicou a moção de Apoio nº3, alegando que a “disponibilidade de medicamentos, equipamentos, tecnologias, insumos, dispositivos médicos pode sofrer restrições em função de monopólios legais, patentes e direitos de propriedade intelectual que geram monopólios (legais ou não) e que patentes podem limitar a importação, o desenvolvimento, a produção e fundamentalmente, o acesso a tais tecnologias, pois permitem a apenas uma empresa impor preços elevados e inacessíveis para milhões de pessoas”.

No mesmo dia, o Instituto Nacional de Patentes Industriais (Inpi) publicou portaria priorizando o exame de pedidos de patentes de produtos relacionados ao combate à Covid-19. Segundo o instituto, o objetivo é estimular empresas nacionais a realizarem pesquisas de medicamentos e equipamentos usados contra a pandemia.

A Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), a Associação Brasileira de Economia da Saúde (ABrES), a Associação Brasileira Rede Unida (Rede Unida), a Rede de Médicas e Médicos Populares (RMMP) e a Sociedade Brasileira de Bioética (SBB) também manifestaram apoio à proposta.

Paulo Villardi, do GTPI, lembra que pesquisas sobre o coronavírus foram tiradas de portfólios de vários laboratórios. “As empresas não investem muito em pesquisa e desenvolvimento. É mais em marketing. O que a gente tem hoje é a pesquisa de segundo uso. É o caso da hidroxicloroquina e do atazanavir. Esses medicamentos não foram desenvolvidos para a Covid-19. Estão sob patentes e (os laboratórios) estão pedindo a (patente) de segundo uso, ampliando ainda mais o tempo de validade de suas restrições”, alertou.

A disponibilidade de medicamentos, equipamentos, tecnologias, insumos, dispositivos médicos pode sofrer restrições em função de monopólios legais, patentes e direitos de propriedade intelectual que geram monopólios (legais ou não) e que patentes podem limitar a importação, o desenvolvimento, a produção e fundamentalmente, o acesso a tais tecnologias, pois permitem a apenas uma empresa impor preços elevados e inacessíveis para milhões de pessoas

Conselho Nacional de Saúde (CNS)

Para o advogado e especialista em saúde do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) Matheus Falcão, o projeto é o caminho mais adequado para que o país tenha maior alcance aos medicamentos. “A licença compulsória é de fato a medida mais adequada, pois promove maior sustentabilidade na oferta, queda de preços e equidade no acesso a nível local e global”, afirmou em reportagem da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz).

Falcão apontou que a OMS articulou o projeto ‘Solidariedade’, do qual participam 17 instituições brasileiras, coordenadas pela Fiocruz. Na plataforma, há 75 projetos em andamento, a maioria ainda na fase de testes em animais, sendo cinco em fases iniciais de testes em humanos. “Há uma articulação intensa em setores públicos para descoberta do medicamento, por isso é importante que esse PL seja aprovado”, avalia.

O espírito do texto é o mesmo da Declaração de Doha, da Organização Mundial do Comércio (OMC), de 2001. O documento, que abriu caminho para o licenciamento compulsório de vacinas e remédios em emergências de saúde, foi usado no começo do século 21 no combate ao HIV. Em 2006, o Governo Lula utilizou o mecanismo para retirar o monopólio de preços decorrente do Efavirenz, utilizado na resposta ao HIV/Aids.

“Com a licença compulsória conseguiu-se importar [o medicamento] por um preço mais baixo da Índia e, em paralelo, trabalhou-se com a capacidade de produção no país, fazendo com que em dois anos essa substância passasse a ser produzida internamente, por Farmanguinhos, da Fiocruz, o que resultou numa economia de milhões aos cofres públicos e a preservação de muito mais vidas”, comenta Pedro Villardi

O pesquisador lamenta que a África do Sul não conseguiu atuar de maneira massiva no enfrentamento à epidemia no final da década de 1990 e início dos anos 2000. “O país viu uma geração ser dizimada porque as pessoas não conseguiam comprar individualmente nem tinha um programa nacional de distribuição que fosse possível frente aos preços utilizados pelas grandes farmacêuticas internacionais. A gente fala que existe um genocídio da indústria farmacêutica que soma dez milhões de mortes no início da epidemia da HIV e AIDS desnecessárias”, denuncia.

O professor da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz) Jorge Bermudez diz que é necessário assegurar condições internas de pesquisa e de produção de produtos essenciais. “Por mais contraditório que possa parecer, o que mais vem sendo sucateado pelo governo é o que está atendendo às demandas do Brasil”, lamenta, referindo-se às instituições públicas de pesquisa e ensino.

Teste em larga escala

O Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, anunciou nesta quinta (21) a criação do primeiro exame genético do mundo para detecção em larga escala do novo coronavírus. O novo teste estará disponível para a rotina de diagnóstico do Einstein a partir do início de junho, e a ideia é vender a tecnologia para Estados e o Governo Federal, abrindo caminho para a testagem em massa no Brasil.

O método, já utilizado para detectar outras doenças, é capaz de ler grandes fragmentos do DNA ou RNA em pouco tempo. Dessa forma, seria possível processar até 1.536 testes a cada 72 horas. A expectativa dos pesquisadores é chegar a 24 mil testes por semana, somente no âmbito do hospital.

Em comparação com os chamados testes rápidos, a vantagem é a precisão, que é de 100%, equivalente à apresentada pelo método RT-PCR, utilizado no Brasil e em diversos lugares. Mas o novo método, além da rapidez no processamento dos resultados, custa a metade do preço cobrado hoje pelo teste RT-PCR, que no Einstein é de R$ 250. Além disso, ele é capaz de detectar o vírus no corpo mesmo de pacientes assintomáticos.

A aplicação e o processamento dos testes são grandes gargalos no controle da pandemia no Brasil. Em comparação com outros 22 países da Europa e América, estamos em último lugar na quantidade de exames realizados.

Sidney Klajner, presidente do Hospital Albert Einstein, afirma que a testagem em massa é crucial para o desenvolvimento de políticas de enfrentamento ao vírus. “Quanto mais diagnósticos, melhor para prever a capacidade do sistema de saúde e até do relaxamento do isolamento social”, diz. “Somente assim conseguimos traçar o perfil epidemiológico e detectar a chamada imunidade de rebanho”.

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