No Brasil, morrem duas vezes mais negros de Covid-19 do que em toda África

Desigualdade explode sob um governo que negligência assistência e extingue órgãos fundamentais para populações mais vulneráveis. Há uma morte para cada três pretos e pardos hospitalizados – entre brancos, a proporção é de uma morte a cada 4,4 internações

Site do PT

A Organização Mundial da Saúde (OMS) informou em seu balanço diário que o continente africano contabilizava até esta sexta (5) 168.464 casos confirmados e 4.700 mortos por Covid-19. O balanço nacional do Ministério da Saúde brasileiro indicou no mesmo dia 645.771 casos confirmados e 35.026 óbitos. Considerando a porcentagem brasileira de pacientes vitimados pela doença entre pretos e pardos (54,8%), no país de Jair Bolsonaro já morreram quase três vezes mais descendentes dos povos africanos escravizados do que em todo o continente-mãe.

A marca estarrecedora não é uma surpresa para os integrantes da Coalizão Negra por Direitos, iniciativa que congrega mais de cem organizações e entidades afro-brasileiras. Como marco do Dia Internacional contra a Discriminação Racial, em 21 de março, o movimento social lançou uma campanha para denunciar o avanço do genocídio negro no país que prenunciava a vulnerabilidade dessa população frente ao coronavírus.

A “Alvos do Genocídio” usa dados do Mapa da Violência para ilustrar a influência do racismo estrutural da sociedade brasileira na mortalidade de cidadãos e cidadãs: uma pessoa negra é assassinada a cada 23 minutos no país, e negros morrem 2,5 vezes mais por armas de fogo do que pessoas brancas. Entre os usuários do Sistema Único de Saúde (SUS), eles e elas são 80%.

Bolsonaro não podia mais ser presidente. Bolsonaro promove, todos os dias, crime de responsabilidade e prevaricação da sua função pública. O descaso com que ele trata um assunto tão grave trará consequências diretas para a população mais pobre, que vai morrer

Douglas Belchior, da Coalizão Negra por Direitos

Na ocasião, Douglas Belchior, representante do movimento, apontou a falta de acesso à saúde pública como um dos fatores que iriam cooperar para a morte de seu povo. Segundo ele, genocídio é também a omissão e negação de acesso a direitos. “Não tem nenhuma dúvida de que o coronavírus, grave como é, vai impor uma radicalização do genocídio negro, no Brasil sobretudo”, afirmou o ativista, que responsabilizou o presidente da República pelo avanço da doença no país.

“Bolsonaro não podia mais ser presidente. Bolsonaro promove, todos os dias, crime de responsabilidade e prevaricação da sua função pública. O descaso com que ele trata um assunto tão grave trará consequências diretas para a população mais pobre, que vai morrer”, previu Belchior.

Celso Athayde, um dos criadores da Central Única das Favelas (Cufa), explica o fenômeno: “É natural que os negros sofram as maiores baixas por vários motivos. Somos 78% da base da pirâmide, que está exposta desde o início da pandemia para o Brasil não parar, como frentistas, garis, balconistas de farmácia ou caixas de supermercado. O colapso do sistema acerta em cheio os mais vulneráveis, aqueles que têm cor”.

“O país não suporta mais essa cultura de violência e racismo que nos acompanha desde o tempo da escravidão e seus capitães do mato”, adverte o senador Paulo Paim (PT-RS). Foto: Alessandro Dantas/PT Senado.

Nesta semana, enquanto os Estados Unidos ardiam nas chamas da revolta pela morte brutal de George Floyd sob os joelhos de um policial, no Brasil a população negra se viu afrontada por uma sucessão de ocorrências emblemáticas do racismo que o senador Paulo Paim (PT-RS) considera ainda pior que o norte-americano, por “velado”.

“A senzala de ontem é o silêncio de hoje, de uma sociedade que não aceita as diferenças e as diversidades. A chibata de ontem se projeta na falta de saúde, educação, segurança, emprego, renda. O país não suporta mais essa cultura de violência e racismo que nos acompanha desde o tempo da escravidão e seus capitães do mato”, discursou Paim nesta quarta (3). E sua fala pode bem ser ilustrada pelo episódio envolvendo o presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, nesta terça (2).

Capitães do mato

No comando da autarquia federal encarregada de zelar pelo legado africano, Camargo foi flagrado em uma reunião com auxiliares na qual pronunciou impropérios contra lideranças do movimento negro, o próprio Zumbi dos Palmares e Adna dos Santos. Conhecida como Mãe Baiana de Oyá, ela é uma das mais representativas sacerdotisas das religiões de matriz africana no Distrito Federal e também Coordenadora de Políticas de Promoção e Proteção da Diversidade Religiosa do governo do DF.

No mesmo dia em que o áudio de Camargo era vazado pelo jornal ‘O Estado de São Paulo’, o menino Miguel Otávio, de 5 anos, filho da empregada doméstica Mirtes Souza, caía do nono andar do condomínio de luxo conhecido como “Torres Gêmeas”, no Recife. A ocorrência foi resultado direto da negligência de Sari Corte Real, patroa de Mirtes e primeira-dama de Tamandaré (PE), que deixou a criança sozinha em um elevador.

Luiza Batista, presidenta da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad), avaliou no site ‘Brasil de Fato’ o comportamento da madame: “Essa patroa é a típica ‘sinházinha’. Ela descumpriu a nota técnica nº 4, de março de 2020, do Ministério Público do Trabalho (MPT), e o decreto estadual, por manter Mirtes e a mãe trabalhando. Por quê? Simplesmente porque ela não queria fazer os serviços domésticos, precisava ter alguém ali para servi-la”.

Uma nota assinada por mais de dez entidades, entre elas a Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas, pediu justiça. “Trata-se de evidente desprezo e coisificação da vida negra. Miguel morreu no dia em que a PEC das Domésticas completou cinco anos, e esse aniversário da legislação de proteção das domésticas diz muito sobre nosso país, que não superou sua herança escravagista e racista”, afirmaram as lideranças.

George Floyd, assassinado nos Estados Unidos, e João Pedro, no Rio de Janeiro. Ambos vítimas da ação arbitrária do preconceito e da violência policial. Imagem: Site do PT.

Na sexta (5), o vice-presidente, general Hamilton Mourão, encerrou a semana dizendo ao site ‘Headline’ que “não existe racismo no Brasil”. Para sustentar a tese, citou a terra de Donald Trump. “Morei nos Estados Unidos na minha adolescência, vi coisas que nunca tinha visto no Brasil. No colégio que eu estudava havia um número reduzidos de alunos negros. Aquele grupo andava sem se misturar com os demais alunos, coisas que eu jamais tinha visto aqui”, declarou.

Mourão prosseguiu na argumentação torta: “O maior percentual de população negra é em cidades como Rio de Janeiro e Salvador. Se você ver os confrontos da polícia no Sul do país, os que vão tombar são brancos”, disse, sem apontar números a sustentar a tese.

Como os números não foram citados, vale lembrar que no Rio Grande do Sul, por exemplo, o Atlas da Violência, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), demonstra que praticamente dobrou a mortalidade de negros entre 2007 e 2017. Na terra de Mourão, que é majoritariamente branca (81,5% da população, conforme o IBGE em 2017), o número de assassinatos de negros é maior na proporção, mas menor em números absolutos.

No Rio de Janeiro, onde o vice-presidente tem residência, levantamento do Instituto de Segurança Pública (ISP) apresentado em 26 de maio mostrou que em abril ocorreram 177 óbitos em decorrência de intervenções de agentes públicos no estado, 43% a mais do que no mesmo mês no ano passado.

Por esse entre outros motivos, o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), concedeu no mesmo dia da entrevista de Mourão liminar suspendendo operações policiais nas comunidades do Rio de Janeiro enquanto perdurar a pandemia. A decisão de Fachin foi tomada 18 dias após a morte de outro menino, João Pedro Mattos Pinto, de 14 anos, alvejado pelas costas dentro de casa durante uma operação policial em São Gonçalo, na região metropolitana da capital.

Morte por desigualdade

Formado por cientistas da Pontifícia Universidade Católica (PUC), da Fiocruz, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Instituto Dor de Pesquisa, o Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde (NOIS) lançou em meados de maio nota técnica que revelou como a epidemia de Covid-19 aprofundou ainda mais nossas desigualdades.

A de raça é a maior delas. Em qualquer recorte empregado, a chance de um negro morrer devido à doença é sempre maior que a de um branco. O ápice da diferença ocorre entre negros analfabetos e brancos com nível superior: 80% contra 19%, quando todos os fatores são levados em conta.

O grupo usou dados do Ministério da Saúde e avaliou 30 mil casos confirmados da doença que já tinham tido um desfecho – alta médica ou morte. Apesar do número parecido de casos, quando apenas as mortes são avaliadas a diferença é brutal: 55% dos pretos e pardos, contra 38% dos brancos.

Os que não têm escolaridade apresentam taxas três vezes maiores (71%) dos que de nível superior (22,5%). Quando os cientistas combinaram raças e escolaridade, as desigualdades se evidenciaram, sempre com maior porcentual de óbitos para negros. Em média, a diferença é de 37%, e no nível superior há a maior diferença: 50%.

A quantidade de notificação sem informação de cor só reforça o racismo institucional, que invisibiliza os negros

Rita Helena Espirito Santo Borret, coordenadora do Grupo de Trabalho de Saúde da População Negra da SBMFC

País com a maior população de afrodescendentes no planeta, segundo o Institute for Cultural Diplomacy, o Brasil acompanha a tendência observada nos Estados Unidos, o segundo país com mais afrodescendentes, e o Reino Unido, nono do ranking. Nas três nações, desigualdade e racismo concorrem para a alta mortalidade de negros e pardos.

Nos Estados Unidos, primeira nação das Américas a ver a escalada dos casos, a desproporção é gritante. Embora 18% da população do país seja negra, 52% dos casos e 58% das mortes por Covid-19 são de pacientes negros, conforme relatório da Fundação para a Pesquisa da AIDS (amfAR) publicado no início de maio.

No Reino Unido, uma pesquisa elaborada pelo Escritório Nacional de Estatísticas concluiu que negros têm quatro vezes mais chances de morrer após contrair o coronavírus. Os dados britânicos mostram que mulheres negras têm 4,3 mais chances de morrer do que mulheres brancas e homens negros, 4,2 mais chances. As disparidades são “parcialmente resultado de desvantagens socioeconômicas e outras circunstâncias”.

No Brasil, o Ministério da Saúde começou a publicar dados de pacientes com recorte de cor/raça só em 10 de abril, a pedido da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC). A Coalizão Negra por Direitos também solicitou os dados via Lei de Acesso à Informação. “A quantidade de notificação sem informação de cor só reforça o racismo institucional, que invisibiliza os negros”, aponta Rita Helena Espirito Santo Borret, coordenadora do Grupo de Trabalho de Saúde da População Negra da SBMFC.

Racismo estrutural

A partir dos dados liberados, análise da Agência Pública concluiu que há uma morte para cada três negros hospitalizados por Covid-19, enquanto entre brancos a proporção é de uma morte a cada 4,4 internações. “Entendemos que o racismo está estruturado na nossa sociedade, e por isso impacta a vida de todos de diferentes formas”, diz Luís Eduardo Batista, pesquisador do Instituto de Saúde da Secretaria de Saúde de São Paulo.

“Ele interfere no acesso aos serviços, na qualidade e até nas relações do usuário com o profissional”, complementa Batista, que também é coordenador do GT Racismo e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).

“Existe uma reprodução do racismo institucional na instituição saúde”, avalia Rita Borret. “Médicos e todos os outros profissionais da saúde são pessoas da mesma sociedade, que é racista. Na medicina e em outros cursos, não há cuidado de atentar para a saúde da população negra, isso hierarquiza as pessoas que têm mais direito a viver, e neste caso são os brancos”, analisa a médica.

Altair Lira, professor do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências da UFBA (IHAC/UFBA), aponta que esse racismo não seria diferente durante a pandemia. “A anemia falciforme é um retrato do racismo no Brasil. Entre o primeiro relato da doença e a primeira política pública se passou quase um século. Isso não é um dado gratuito quando identificamos que a doença é predominante entre negros”, revela.

Rita Borret diz que esse é um fato histórico. “Se olhar para todas as doenças infecciosas que não conseguimos erradicar no nosso país, como tuberculose e hanseníase, elas são mais frequentes entre a população preta e pobre”, afirma a médica. “Porque a população que tem dinheiro e acesso consegue achar meios para diminuir a contaminação entre si, e aí isola o agente infeccioso entre a população que está autorizada a morrer”.

É o fenômeno da “necropolítica”, termo cunhado pelo filósofo camaronês Achille Mbembe que investiga como governos decidem quem vive e quem morre, e de que maneira isso vai ocorrer. O exemplo máximo foi a frase dita por Bolsonaro no início da pandemia: “Alguns vão morrer? Vão morrer. Lamento, essa é a vida”.

Quilombolas também são vítimas

A diretora-executiva da Oxfam Brasil, Katia Maia, lembra que o racismo, além de estar institucionalizado, está naturalizado. “E isso se reflete na comunidade quilombola”, acrescenta. A advertência abriu o debate virtual promovido pela organização nesta quinta (4), sobre essas comunidades diante da pandemia.

Monitoramento autônomo da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) registrava na quinta mais de 350 casos confirmados e a morte de 56 pessoas. Ao menos 178 estão em monitoramento, além de quatro óbitos com suspeitas da doença, mas sem confirmação do diagnóstico.

“A Covid-19 veio para evidenciar o racismo que já existe e que é muito bem estruturado. E toda essa estrutura racista não ia mudar por causa da Covid, pelo contrário”, aponta a secretária-executiva da Conaq, Selma Dealdina. “O racismo é tão cruel e tão bruto com os quilombolas, e os negros em geral, que a gente, em pleno século 21, ainda tem que falar e fazer campanhas antifascistas e antirracistas, porque a gente já não consegue respirar mais”.

As queixas de negligência dos governos locais se somam à falta de ações do governo Bolsonaro. “Os quilombos existem há pouco tempo para o Estado brasileiro, mesmo estando naqueles espaços há mais de 300 anos. Só a partir da Constituição que eles começaram a respeitar, e isso não está acontecendo mais”, lamenta Selma.

A líder do Conaq lembra a extinção do Ministério de Desenvolvimento Agrário e dos espaços de conferências públicas para acompanhamento e cobranças de políticas e programas desfeitos por Bolsonaro. Incluindo o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), extinto no dia em que ele assumiu a Presidência.

“Nós temos muitas comunidades que produzem (alimentos) e estão produzindo (…) vários quilombos estão entregando alimentação. É tão bonito quando a gente vê matérias como ‘MST entrega oito toneladas de alimentos’. Mas a gente tem que olhar para uma grande maioria, que está em vulnerabilidade e está passando fome”, alerta a quilombola.

Vice-procuradora-geral da República de 2009 a 2013, Deborah Duprat – que até maio ocupava a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) do Ministério Público – confirma o quadro: “O que lhes permite enfrentar isso é a força histórica e a ancestralidade. Vem do esforço pessoal e coletivo para enfrentar a pandemia, porque não contam com o aparato estatal”.

A procuradora defende a imediata derrubada da Emenda Constitucional (EC) 95, o chamado Teto de Gastos, que congelou investimentos públicos. Para ela, debater a superação das estruturas excludentes passa pela inconstitucionalidade dessa medida. Além da retomada do papel provedor e cuidador do Estado e do pacto constitucional de 1988.

Em artigo escrito por ocasião do 13 de Maio, o senador Paulo Paim lembrou que desde o tempo de senzalas e chibatas, nada é diferente. “Negam a cidadania e a vida continua valendo nada. Desossam a carne desse povo que, um dia, segurou esse país pelo braço. Como eternizou Elza Soares: A carne mais barata do mercado é a carne negra”, concluiu o senador.

No clipe da música mencionada por Paim, duas atrizes estapeiam as faces de jovens dançarinos negros, que a partir de determinado momento, reagem com um olhar enfurecido. Nas palavras da líder dos empregados domésticos Luiza, os movimentos populares, especialmente o movimento negro, estão cada dia mais “revoltados com tanta falta de respeito, empatia, consciência, solidariedade e justiça”.

Pode ser que o país termine ecoando as últimas palavras da música do grupo Farofa Carioca eternizada por Elza Soares:

“Ainda guardo o direito
De algum antepassado da cor
Brigar sutilmente por respeito
Brigar bravamente por respeito
Brigar por justiça e por respeito
De algum antepassado da cor
Brigar, brigar, brigar”

Elza Soares – A carne (Seu Jorge, Marcelo Yuca e Wilson Capellette).

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