Os EUA podem ser aqui: a linha de tempo do desastre

Bolsonaro alinha seus passos aos de Trump e caminha com ele para o abismo da recessão, do desemprego e das mortes fora de controle   

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Bolsonaro e Trump, irmãos siameses do desastre sanitário e econômico

A sincronia de movimentos entre Donald Trump e Jair Bolsonaro durante a escalada da pandemia de coronavírus pelo mundo vai construindo uma linha do tempo do desastre anunciado. O comportamento do presidente brasileiro, que insiste em se espelhar no discurso do colega americano, obedece a um timing e a uma linha política que conduziram os Estados Unidos a 654.301 casos e 31.628 mortes até quinta-feira, 16 de abril. O Brasil registrava 30.891 casos e 1.952 mortes.

Desde o início da crise, em fevereiro, ambos iniciaram seus posicionamentos minimizando o alcance da doença e atacando o “alarmismo” da imprensa e dos cientistas. Quando, em março, prefeitos e governadores de estado começaram a adotar medidas de isolamento social por conta própria, por ausência de comando federal, ambos foram contrários e, pretensamente em defesa da economia, bateram na tecla de que “a cura não pode ser maior do que o problema”.

Encurralados pelo aumento do número de casos de Covid-19, apelaram para o incipiente uso de cloroquina, enquanto batiam cabeça com as principais autoridades de saúde de seus países. Com eloquência bélica, atacam seguidamente imprensa e jornalistas, disparando meias verdades ou dados distorcidos pelas redes sociais. Nesta semana, acrescentaram mais tensão a um relacionamento que vem crispado desde as posses de ambos: com os Parlamentos de seus países.

Fortalecido após sobreviver à tentativa de abertura de um processo de impeachment no início do ano, Trump investiu contra o Congresso. Em entrevista coletiva nesta quarta, 15, ameaçou suspender as duas casas legislativas do Capitólio para forçar o preenchimento de cargos com 165 indicados, evitando a obrigatória aprovação do Senado.

Trump acusou o Congresso de “obstruir” sua competência de nomear juízes e outros cargos ao realizar sessões sem votação. ”Se não pudermos agir para nomear essa gente da qual necessitamos, e necessitamos especialmente por causa da pandemia, vou fazer algo que preferiria não fazer”, advertiu, avocando um poder constitucional jamais utilizado por um presidente americano: o artigo 3º do capítulo II da Carta Magna.

No Brasil, Bolsonaro tirou a quinta-feira, 16, para retomar a carga contra o Congresso, personalizado no presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM/RJ). Estimulados pelo “mito”, bolsonaristas correram para as redes sociais a convocar um novo ato pelo fechamento do Congresso Nacional, do Supremo Tribunal Federal (STF) e dos novos inimigos: os governos estaduais e municipais.

No mesmo dia, logo após demitir o ministro da Saúde, Luiz Mandetta, Bolsonaro voltou a criticar as medidas restritivas e, tentando transferir responsabilidades, apontou como “exagero” as decisões tomadas por governadores e prefeitos. “Em nenhum momento fui consultado sobre medidas adotadas por grande parte de governadores e prefeitos”, choramingou, para depois lembrar, em tom sugestivo: “Quem tem poder de decretar Estado de Defesa ou de Sítio depois de uma decisão do Parlamento é o presidente da República, e não prefeito ou governador”.

Desafio aos Poderes

Bolsonaro avisou que pode enviar um projeto de lei que aumenta a lista de atividades essenciais, driblando as regras do isolamento, após sofrer dura derrota no STF. Na sessão desta quarta, 15, a maioria da Corte referendou decisão do último dia 24 de março em que o ministro Marco Aurélio Mello deixou claro que a Constituição prevê autonomia aos entes da Federação para adotar providências a fim de proteger a saúde da população, incluindo as medidas de isolamento social em seus diferentes graus.

No Twitter, até as postagens são sincronizadas. Entre 21 e 24 de março, Bolsonaro ecoou várias manifestações de Trump, minimizando a gravidade da situação e pregando o afrouxamento das medidas de isolamento e o uso da cloroquina.

Também são semelhantes na demora para liberar ajuda para as populações mais pobres. Enquanto Bolsonaro protelou como pode o pagamento do auxílio emergencial para trabalhadores informais, Trump exigiu que seu nome fosse gravado nos cheques de auxílio econômico entregues pelo governo. Mais uma ação sem precedentes na história americana, a decisão atrasou o envio dos cheques por vários dias.

“Atrasar os pagamentos diretos às famílias vulneráveis apenas por imprimir o nome nos cheques é mais um novo exemplo vergonhoso do fracasso catastrófico do presidente Trump no tratamento da crise com a urgência que se requer”, reagiu a líder Democrata da Câmara dos Representantes, Nancy Pelosi, em comunicado.

Lá, como cá, sofrem os mais vulneráveis. À espera da ajuda, pelo menos um terço dos americanos entraram o mês de abril sem pagar o aluguel, segundo o Conselho Nacional de Habitação Multifamiliar. E dados divulgados pelo Departamento do Trabalho dos Estados Unidos nesta quinta, 16, apontam que 22 milhões de cidadãos do país já solicitaram auxílio-desemprego no último mês. “Não há onde se esconder. Esta é a recessão mais profunda, mais rápida e mais ampla que já vimos”, afirmou Diane Swonk, economista-chefe da consultora Grant Thornton, ao jornal The New York Times.

Na busca pelo “Graal” da cura que evitaria o isolamento social e seus efeitos sobre a atividade econômica, começaram juntos a propagar o uso da cloroquina. Em 19 de março, o americano mencionou o medicamento pela primeira vez, em coletiva à imprensa e também nas redes sociais. Dois dias depois, foi a vez de Bolsonaro ir ao Twitter anunciar a ampliação da produção de cloroquina pelos laboratórios do Exército.

Assim como Bolsonaro comprou briga com Mandetta, Trump bateu de frente com Anthony Fauci, considerado o mais importante especialista em doenças infecciosas dos Estados Unidos. Um dos principais integrantes da força-tarefa criada pela Casa Branca para responder à pandemia, Fauci vem contradizendo Trump no tema cloroquina e em outras questões ligadas ao novo coronavírus. Ao contrário do brasileiro, ainda não foi demitido, apesar de críticas dos aliados de Trump.

Mas o americano voltou à carga contra os governadores. Nesta quinta, 16 apresentou um plano de três fases para reabertura de estados a partir do fim do mês. Ao mesmo tempo em que quase 4,5 mil doentes morriam em 24 horas, Trump afirmava que os Estados Unidos passaram do pico de casos. “Agora estamos prontos para começar a vida novamente”, de uma maneira “segura, estruturada e muito responsável”, prometeu.

Narcisistas

Na avaliação do professor de relações internacionais Oliver Stunkel, o alinhamento dos dois presidentes, que indicam pressa para relaxar as regras de isolamento antes mesmos do pico da doença em ambos países, é mais uma briga que Trump e Bolsonaro compraram com uma estratégia padrão de suas políticas de antagonismo com o mundo.

“Buscar algum confronto para viabilizar a retórica, pois o modelo de governança depende de um inimigo. Esse trabalho de culpar a China, depois governadores e prefeitos, e também ir contra os especialistas e técnicos de saúde, é necessário para esse modelo de governança. Nunca buscam uma união, mas uma tensão”, afirmou o professor ao jornal El País, ressaltando que Bolsonaro sai bastante enfraquecido politicamente ao seguir a postura do americano.

Pouco mais de um ano atrás, em 19 de março, a imprensa americana tratou de dissecar Bolsonaro durante sua visita a Washington, onde ele se encontrou com Trump na Casa Branca. As semelhanças na oratória e no estilo populista dos dois chamou tanto a atenção quanto os planos de ambos para as relações bilaterais.

O jornal The New York Times considerou o encontro dos líderes como um reflexo de espelho. “Como outros líderes autoritários recebidos pelo sr. Trump desde sua posse, o sr. Bolsonaro é um eco do presidente americano: um nacionalista orgulhoso cujo apelo populista vem, em parte, do seu uso do Twitter e de seu histórico de declarações brutas sobre as mulheres, os gays e os grupos indígenas”, publicou.

Como “Narciso acha feio o que não é espelho”, o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, em coluna no site Carta Capital, afirmou que a pandemia apenas exacerbou características das personalidades que habitam Trump e Bolsonaro, “dois chefes de Estado contaminados desde a tenra idade com o vírus do narcisismo ressentido”.

Menos sutil, o linguista americano Noam Chomsky não poupou palavras ao criticar os dois nesta quarta, 15, em entrevista ao programa jornalístico independente Democracy Now. “Enquanto Trump nos encaminha para a destruição, ele recebe alguma ajuda tão burra na parte sul do hemisfério”, disse o linguista. “Tem um outro louco, Jair Bolsonaro, que está tentando competir com Trump para ver quem pode ser o pior criminoso do planeta.”

Chomsky explicou que acompanha de perto o noticiário sobre o Brasil porque a esposa, a tradutora Valeria Wasserman, é brasileira. Questionado sobre o que lhe dá esperança nesse momento, mencionou “ações populares inspiradoras”, em especial o trabalho de médicos e enfermeiros que continuam trabalhando “sob condições extremamente perigosas”. Ainda há quem lute pela vida, apesar dos narcisistas…

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