Pedro Tierra: Mirar o espelho da memória

Para o militante da resistência, relembrar, 51 anos depois, dos horrores perpetrados pela ditadura militar é um desafio “incontornável” da consolidação da democracia no Brasil

Cultivar a memória é um ato político indispensável aos processos sociais que projetam e realizam transformações profundas e duradouras na vida dos seus cidadãos. Manter acesa por meio de instrumentos materiais e simbólicos a trajetória que cumprimos é a formula eficaz que as comunidades humanas inventaram para transmitir às gerações que sucedem, que não viveram os dramas e conflitos do passado remoto ou recente, a experiência que baliza a árdua consolidação dos direitos coletivos – e individuais – de um povo.

A nação brasileira despertou dividida na manhã. Ouvidos atentos ao rádio que anunciava em sucessivas edições extraordinárias: o governo do Presidente João Goulart fora deposto pelas forças armadas. Há 51 anos aquela manhã anoiteceu o país, atendendo aos objetivos de uma conspiração que percorrera uma década, desde o suicídio de Vargas, no 24 de agosto de 1954. Movimentaram-se em defesa dos interesses dos setores sociais privilegiados articulados com interesses de grandes empresas estrangeiras, como revelam, hoje, documentos históricos e depoimentos de seus protagonistas.

Tropas do Exército deram o Golpe de Estado, respondendo aos objetivos de uma conspiração civil-militar que percorrera uma década, desde o suicídio de Vargas, em 1954, em defesa dos interesses dos setores privilegiados da sociedade. Os golpistas desencadearam violenta repressão contra as entidades populares, interviram nos sindicatos de trabalhadores, incendiaram a sede da UNE, romperam o Estado de Direito estabelecido pela Constituição de 1946.

O Presidente da República, João Goulart, legitimamente eleito, foi forçado a exilar-se. Os generais e seus aliados civis, liderados pelos governadores de Minas, Magalhães Pinto, do Rio de Janeiro, Carlos Lacerda e de São Paulo, Adhemar de Barros usurparam o poder, violaram a constituição e atribuíram-se a legitimidade da boca dos canhões.

Baixaram o primeiro Ato Institucional para investigar e punir os inimigos do novo regime; criaram as Comissões Gerais de Investigação e instauraram os Inquéritos Policiais Militares; fecharam o Congresso Nacional, cassaram os mandatos dos parlamentares opositores; extinguiram os Partidos Políticos e o Comando Geral dos Trabalhadores – CGT; dizimaram as Ligas Camponesas; em nove meses produziram mais de 500 intervenções em Sindicatos de Trabalhadores. Seus dirigentes foram destituídos, presos, torturados, mortos ou forçados ao exílio.

A juventude brasileira ocupou as ruas do país com cores, canções e tinta para clamar com seus artistas, com os cidadãos que percebiam o clima opressivo que se estabelecera no país: “ABAIXO A DITADURA!” Em abril de 1968, as forças de repressão do regime assassinaram o estudante secundarista Edson Luís. Dezenas de milhares de pessoas acompanharam o cortejo, proibido pela Ditadura, para enterrá-lo. Em resposta, algumas semanas depois, já era maio, a passeata dos cem mil inundou o centro do Rio sob a liderança de Wladimir Palmeira e deu voz à indignação dos brasileiros contra a violência do regime.

Em outubro daquele ano, oitocentos jovens foram presos em Ibiúna, na Grande São Paulo, no Congresso da UNE. A noite se fechava sobre o país. 13 de dezembro: a noite absoluta. O terror de Estado erigido em Lei. O General Costa e Silva assinou o Ato Institucional No 5, uma monstruosidade jurídica ancorada exclusivamente na força das armas. O Congresso fechado, mais uma vez. O habeas corpus, instituto definidor, por excelência, do Estado de Direito, abolido.

A pena de morte e o banimento de cidadãos foram instituídos e, com eles, uma legião de expulsos do país, convertidos em apátridas. Sem documentos que lhes assegurassem um território, uma referência de nascimento, um lugar. A inteira e definitiva vulnerabilidade diante do mundo. Estrangeiros em qualquer país. Esse drama só ocorrera até então na Europa, com os judeus, sob o nazismo, nos anos que precederam e durante a Segunda Guerra Mundial.

O poder que se materializava exclusivamente pela força, instituiu a tortura como como método, como instrumento quotidiano para aniquilar quem ousava se levantar contra ele. O Estado ditatorial montou um sistema repressivo tentacular com o objetivo de estabelecer o controle total – totalitário – da sociedade. Assentado sobre a delação, o medo, as prisões, a tortura, os assassinatos, os “desaparecimentos”, esse evento que se disseminou pelo continente como um fenômeno inseparável das Ditaduras que anoiteceram a América Latina naquele período, todas elas inspiradas pelos interesses dos Estados Unidos no continente e executadas com a participação da CIA, como se revelou na chamada Operação Condor, traço unificador de todas elas, na brutalidade e nos objetivos.

As famílias que perderam seus filhos seguiram décadas a fio em busca de uma palavra, uma notícia, uma reposta sobre seu paradeiro. Travam, ainda hoje, uma batalha contra o esquecimento. Uma interminável batalha pelo Direito à Memória e à Verdade.

A exigência de revelar os crimes de tortura cometidos por agentes do Estado, em nome do Estado, se constitui numa necessidade para os fundamentos da edificação de uma Democracia sólida: “Não como qualquer forma de revanche ou de vindita; não se pretende torturar o torturador, assassinar o assassino, sequestrar o sequestrador, desaparecer quem fez desaparecer. Mas a apuração desses crimes permitirá a sociedade, conhecendo em profundidade tais horrores, não consinta que jamais esses fatos voltem a ocorrer em nosso país”. (Depoimento de Marcelo Cerqueira e Modesto da Silveira, advogados de presos políticos).

A árdua construção dos mecanismos de memória social e política de um povo que amanhece: construir a Comissão dos Mortos e Desaparecidos abriu as portas e permitiu uma ação continuada do Estado para tratar de um tema interditado. Ninguém sabe definir quem foi responsável pela proibição. Mas todos acatam essa proibição tácita porque é mais fácil render-se ao silêncio herdado dos longos anos de treva do que ensaiar um grito na praça para por a andar a madrugada. O país se move a partir da sociedade, dos familiares dos perseguidos políticos e a partir do Estado, do Parlamento para retirar do silêncio e da sombra nome a nome, rosto a rosto os que foram dissolvidos pela força, pelos arquivos ocultos ou incendiados, e condenados ao esquecimento, à custa de sempre repetir a mesma dor.

Outros aderiram às estruturas do Estado, permaneceram dentro das Forças Armadas ou seguiram suas atividades no mundo empresarial, absolvidos por uma Lei de Anistia que lhes permitiu, encerrado o período ditatorial, retornar sem dano, como se nada tivesse acontecido, aos seus afazeres quotidianos. Esses são filhos do artigo primeiro da Lei de Anistia de 1979, monstruosidade jurídica em que os responsáveis pelos crimes começam por anistiar-se a si mesmos, preventivamente. Lei validada há poucos anos por uma Suprema Corte, composta por juízes que não se fazem de rogados para afirmar que o Golpe de Abril de 1964, que rompeu o Estado de Direito, “foi um mal necessário”. Esses são filhos da obscura referência aos “Crimes conexos”: invenção jurídica envergonhada para estender o benefício da Lei aos torturadores. Numa frase: o Supremo Tribunal Federal, tão zeloso quanto ao que chama de combate à impunidade garantiu anistia aos torturadores. Anistiou homens que cometeram crimes contra a humanidade.

Levantar diante dos olhos, 51 anos depois, o espelho da memória e incorporar esses anos de treva, com as perseguições, a brutalidade, a delação, o medo, a tortura, os assassinatos, os desaparecimentos, o exílio, o rosário de horrores perpetrados pelo Estado ditatorial e enquadrá-los dentro da exata dimensão histórica que lhes corresponde: uma realidade incontestável e irrecusável que deitará sua sombra sobre a face futura do Brasil até que seja resgatada. Esse é um dos desafios incontornáveis da consolidação da democracia no Brasil.

A construção do Memorial da Liberdade e da Democracia João Goulart é parte da recuperação dessa memória no país do esquecimento. Não por acaso vozes se levantam contra a materialização desse símbolo na capital do país. Uma associação funesta de interesses reacionários, espúrios, com o oportunismo de serviçais sempre a postos para perpetuar o silêncio sobre o que ocorreu aqui durante os anos de chumbo.

Brasília, o espaço institucional onde se consumou o Golpe de Estado, deve a si mesma e ao Brasil esse lugar de encontro, de memória, de combate ao esquecimento. Um espaço de construção de consciência cidadã, para homenagear esse homem, o Presidente João Goulart, com o traço imortal de Oscar Niemeyer, e com sua história, perpetuar a luta de tantos brasileiros e brasileiras para construir uma sociedade generosa e capaz de acolher todos os seus filhos. Um espaço para contar tudo isso às gerações que chegam, para que a gente nunca esqueça, para que nunca mais aconteça.

Pedro Tierra é poeta e militante da resistência. Cumpriu cinco anos de prisão nos cárceres da Ditadura. É secretário da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Legislativa do Distrito Federal

PT Cast