Processo contra Gleisi Hoffmann é aberração jurídica sem provas

Lava Jato inova ao criar a delação premiada mutante, que se transforma na medida em que é desmentida pelos fatos. Mais uma vez, operação atua sem provas

Lula Marques/Agência PT

Estão disponíveis para qualquer cidadão que tenha curiosidade, no site do Supremo Tribunal Federal, as informações a respeito da Ação Penal 1.003, em que o Ministério Público Federal processa a senadora e presidenta do PT, Gleisi Hoffmann. Os procuradores da Operação Lava Jato protocolaram a denúncia em 24 de fevereiro de 2017, os ministros do STF irão julgá-la nesta terça-feira, 19 de junho de 2018, por corrupção passiva, organização criminosa e lavagem de dinheiro.

Trata-se de um processo que traz aberrações sem precedentes, mesmo no criativo campo processual da Lava Jato. Todas constam nas peças processuais apreciadas pela Justiça, como a denúncia do MPF, a contestação da Defesa e as alegações finais das duas partes.

Se tem uma inovação que os procuradores da Lava Jato já trouxeram à prática processual brasileira é a de denunciar unicamente baseado em delações premiadas. Não que a lei brasileira permita, pelo contrário. A norma que cria o instituto da delação premiada (12.850/2013), é cristalina ao afirmar, em seu 16º parágrafo do Artigo 4º:“§ 16. Nenhuma sentença condenatória será proferida com fundamento apenas nas declarações de agente colaborador.”

Mas tem dado certo para os acusadores, pelo menos no âmbito da 13ª Vara Criminal de Curitiba (comandada por Sérgio Moro) e do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, usar só o que diz um delator premiado (que recebe benefícios penais para sustentar aquela versão) e ainda assim obter uma condenação. Assim, por exemplo, foi com Luiz Inácio Lula da Silva, condenado pela palavra do delator Leo Pinheiro, que disse sozinho que Lula era o verdadeiro dono do tal triplex. Não provou, não houve quem corroborasse sua tese, não havia uma só prova a sustentar o que disse. Enfim.

Abaixo, para além do uso da palavra de delatores como única fonte de prova, estão elencadas as maiores originalidades da criação dos procuradores da Lava Jato trazidas à luz no processo contra Gleisi Hoffmann.

Delatores contradizem a si mesmos e uns aos outros. Vale a versão preferida do MPF

A grande inovação da denúncia contra Gleisi é a multi-delação, aquela à prova de contra-prova, aquela que muda tudo quando é desmentida, aquela que contradiz o colega delator para abarcar todas possibilidades possíveis.

Assim, em resumo, a Lava Jato acusa a presidenta do PT de ter recebido R$ 1 milhão de propina em 2010, quando era candidata ao Senado, para – na eventualidade de ser eleita e vir a exercer um cargo importante no governo Dilma Rousseff, na eventualidade de Dilma vir a ser eleita – prestar algum bom serviço às empreiteiras que mantinham (por meio de propinas e sua força de influência na estatal) o diretor de abastecimento Paulo Roberto Costa na Petrobras. É tão mirabolante que custa a entender, mas é esta mesma a tese do MPF.

Quem denuncia o tal acordo? Paulo Roberto Costa, o doleiro Alberto Yousseff, aquele que o MPF diz ter ser o gerenciador da grande “caixa geral de propina” criada na Petrobras para corromper dezenas de políticos e um governo inteiro, e o Antônio Carlos Pieruccini, sócio e amigo de Yousseff. Os três são condenados da Justiça que receberam benefícios penais do MPF para trazerem esta denúncia.

Não há nenhum elemento na denúncia a incriminar Gleisi Hoffmann que não seja a palavra destes três delatores premiados. Palavra esta, aliás, que muda no decorrer do período, do processo e das oitivas que prestavam:

  •  Na folha 17 do processo, Paulo Roberto diz que Alberto Youssef fora procurado pelo ex-Ministro Paulo Bernardo (marido de Gleisi) para combinar o esquema de repasse de R$ 1 milhão para a campanha de Gleisi
  •  Nas folhas 53 e 54, Alberto Yousseff conta quem foi não ele, mas sim Paulo Roberto quem foi procurado por Bernardo
  •   Nas folhas 68 e 69, confrontado em sua versão, Costa passou a dizer que Alberto Yousseff, na verdade, não havia lhe contado precisamente se tinha sido procurado pelo próprio ministro Bernardo ou por algum outro interlocutor para pedir a suposta propina

    As multiversões estão longe de parar por aí.

  •  Na folha 49, Yousseff disse que teria entregue pessoalmente a quantia de R$ 1 milhão para um senhor em shopping em Curitiba
  •  Na folha 69, em declarações complementares, “corrige” circunstâncias fundamentais dessa “estória” ao afirmar que “não entregou o valor todo de uma vez, mas em três ou quatro operações”
  •  Em anexo na mesma folha 69, em que consta depoimentos de datas diferentes, estabelece nova dúvida, ao dizer que “em razão do fluxo de caixa, decidiu que essa entrega ocorreria em duas ou três vezes”
  •  Finalmente, a mesma folha 69 se encerra com mais uma versão de Yousseff, que alega ter se confundido nas outras vezes que falou sobre o assunto. Na realidade, ele não teria ido pessoalmente entregar o dinheiro. Na verdade, agora sim se recorda, ele tinha enviado um emissário, o operador Rafael Ângulo Lopes, e este teria entregue o dinheiro a um cúmplice de Gleisi, o empresário Ernesto Kugler Rodrigues, aquele tratado apenas como um senhor na primeira versão

Diante de tantas versões, a Procuradora-Geral da República achou por bem recolher os testemunhos do operador citado, Rafael ângulo, e do empresário Kugler Rodrigues.

  • Nas folhas 401 e 402, Rafael Ângulo – outro aliás que já assinou acordo de delação premiada –  afirma com todas as letras que jamais entregou valor nenhum para Gleisi Hoffmann ou qualquer pessoa a ela ligada, a mando de Alberto Yousseff ou seja lá quem for. Disse também que nunca ouvira falar de Ernesto Kugler Rodrigues
  • Na folha 264, Ernesto Kugler Rodrigues diz que nunca se encontrou com Yousseff, que nunca ouviu falar de Rafael Ângulo e que nunca recebeu propina nenhuma em nome de Gleisi Hoffmann

Assim, as coisas estavam complicadas para Alberto Yousseff. Ele não conseguia emplacar nenhuma versão, a cada uma que apresentava, era desmentido por um colega delator. Eis que ele resolve lançar mão, então, do empresário Antônio Carlos Pieruccini, outro condenado que também assinou acordo de delação premiada.

Sócio e amigo de Yousseff desde as operações do Banestado, que deram origem à Lava Jato, Pieruccini topa realizar uma nova delação premiada na qual, orientado pelo mesmo advogado de Youssef diz que tudo que o seu amigo havia dito é verdade, que ele tinha entregado dinheiro sim para o empresário Kugler Rodrigues, e que este falava em nome da candidatura de Gleisi Hoffmann.

Os fatos contradizem as versões. O MPF fica com as versões

Pois bem. Após superar o conflito de versões, o MPF conseguiu fechar um ajambrado narrativo sem provas que iria sustentar até onde desse: Em 2010, o sócio de Yousseff, Antônio Carlos Pieruccini, se encontrou em quatro oportunidades em um shopping em Curitiba com Ernesto Kugler Rodrigues para entregar parcelas de uma quantia total de R$ 1 milhão em propina para a campanha de Gleisi Hoffmann. O dinheiro servia para que esta, quando e se viesse a ser eleita, se Dilma Rousseff também viesse a ser eleita, prestasse serviços às empreiteiras que tinham um esquema de fraude em licitações na Petrobras, isso para o caso de Gleisi vir a exercer um cargo importante no eventual governo Dilma.

Mas, então, os fatos começaram a atrapalhar as versões. Por meio da apresentação de elementos probatórios periciais e documentais, foi-se descobrindo que:

  • Antônio Carlos Pieruccini afirmou que combinava via conversas telefônicas (teriam sido quatro) com Ernesto Kugler Rodrigues as quatro entregas de propina no shopping de Curitiba. Com os sigilos telefônicos dos dois devidamente quebrados a pedido dos procuradores da Lava Jato, descobriu-se que há apenas uma única ligação, de poucos segundos, entre Ernesto Kugler e Pieruccini. Foi em 3 de agosto de 2010. Em poucos segundos, segundo a versão em que acredita o MPF, os dois combinaram todas as datas de entrega, o local, os valores a serem repassados em cada dia, os horários dos encontros, tudo
  • Yousseff disse também que tanto Gleisi quanto seu marido, Paulo Bernardo Silva, foram algumas vezes, em período específico, à Petrobras conversar com o diretor de abastecimento, Paulo Roberto Costa, sobre assuntos ligados ao esquema criminoso de que faziam parte. Assim, buscou-se identificar incidências em nome de Gleisi ou Bernardo nos registros de entrada e saída da sede da Petrobras no período especificado. Conforme consta na página 450 do processo, porém, a Polícia Federal não encontrou incidência nenhuma
  •  Foram, então, efetuadas pesquisas na agenda de compromissos de Paulo Roberto Costa, baseada em seus e-mails funcionais, a fim de identificar algum evento relacionado a Paulo Bernardo Silva ou Gleisi Hoffmann. Nada foi encontrado. Está na folha 453 do processo
  • Pieruccini disse que buscou o dinheiro em São Paulo, em quatro viagens, mas só apontou a data da suposta última entrega. O inquérito procurou comprovar as viagens e estadias de Pieruccini em São Paulo, nos registros de companhias aéreas e rodoviárias. Não há registros de passagens em seu nome no período investigado. Diante dessas evidências, Pieruccini afirmou, em novo depoimento, que fazia suas viagens de carro, cinco horas para ir e cinco para voltar, sempre no mesmo dia. Não há registros dessas supostas viagens nos pontos de pedágio entre as duas cidades.
  •  Pieruccini disse, primeiro, que se apresentava na portaria para entrar no prédio onde fica o escritório de Yousseff e pegar o dinheiro. Mas não tem nenhum registro de seu nome no livro de visitas do prédio. Passou a dizer, então, que utilizava um cartão próprio que lhe foi fornecido. Mas na cancela eletrônica do prédio nenhum registro do tal cartão, embora lá estejam todos os registros de quem passou pelo local utilizando um cartão. Tampouco Alberto Youssef ou Rafael Ângulo disseram ter dado um cartão ao suposto emissário

 

O ato de ofício que não é ato nenhum

Como se sabe, o que distingue uma doação de campanha via caixa dois (ilícito eleitoral de menor potencial lesivo e menor pena) de um pagamento de propina que enseja em crime de corrupção passiva e lavagem de dinheiro é se a pessoa que recebeu a quantia faz uso de seu poder em virtude do cargo público que exerce para praticar um ato que beneficie aquele que a presenteou com o recurso. Este é o chamado ato de ofício. Para haver crime de corrupção passiva, é necessário que exista ato de ofício.

Assim, por exemplo, a Justiça disse que não conseguiu enxergar nenhum ato de ofício do ex-governador Geraldo Alckmin (PSDB) em favor das empreiteiras que estão envolvidas no escândalo do “Trensalão” e que doaram milhões de reais às suas campanhas eleitorais. Assim, Alckmin não teria cometido os crimes de corrupção passiva, lavagem de dinheiro nem organização criminosa. A denúncia decaiu para caixa dois de campanha, foi enviada para a Justiça Eleitoral, que sequer estabeleceu prazo para o julgamento, e não caracteriza ameaça a seus direitos políticos. Sua candidatura presidencial está garantida.

Mas, e no caso de Gleisi? O que teria feito Gleisi Hoffmann para que o milhão de reais supostamente entregue por um emissário de Yousseff a um suposto emissário da então candidata caracterizassem o pagamento de uma propina em troca de um ato de ofício futuro, que ela viria a realizar no caso de ser eleita, no caso de Dilma também ser eleita, e no caso de Dilma conferir a Gleisi um cargo importante no seu governo a ponto desta poder influenciar dentro do suposto esquema de empreiteiras na Petrobras?

Resposta: ato nenhum. É isso mesmo. O ato de ofício de Gleisi é não cometer ato nenhum. Consta na página 64 das alegações finais do MPF:

GLEISI HOFFMANN, a seu turno, também praticou ato de ofício na modalidade omissiva porquanto, como todo e qualquer parlamentar, detinha o poder-dever previsto no art. 70 da Constituição Federal, de fiscalizar os atos praticados por órgãos e entidades da Administração Pública Federal, direta e indireta, inclusive a PETROBRAS. Naquele contexto fático e temporal, é certo que GLEISI HOFFMANN tinha prerrogativas parlamentares e institucionais para fiscalizar a legalidade dos atos praticados no âmbito da PETROBRAS, assim como de, no jogo político e democrático brasileiro, indicar e defender, individualmente ou inclusive em nome do Partido dos Trabalhadores, a manutenção de pessoas em determinados cargos, ministérios e entidades da Administração Pública Federal, e, por sua vez, enquanto parlamentar e líder da referida agremiação, prestar apoio político ao chefe do Poder Executivo Federal no Congresso Nacional.

É realmente preciso ler para crer. Eis então a acusação do MPF contra Gleisi. Ela recebeu por meio de um emissário que nega ter feito este trabalho o valor de R$ 1 milhão quando nem eleita tinha sido ainda. Em troca disso, tudo que ela precisava fazer era não fazer nada. Por esta lógica, utilizada pelos procuradores da Lava Jato, é possível condenar por corrupção passiva todo e qualquer parlamentar e todo e qualquer integrante do governo federal durante os anos de 2010, 2011 e 2012. Qual seria exatamente o crime? Não ter fiscalizado adequadamente o que se passava dentro da Petrobras naquele período.

É sobre esta denúncia que se debruça o Supremo Tribunal Federal nesta terça-feira, 19 de junho de 2018. O MPF já fez história ao criar uma acusação tão mirabolante. Resta saber o que fará o STF.

Por Jornalistas Livres

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