Proposta de Flávio Bolsonaro ataca a função social da propriedade

Projeto do senador, filho de Jair Bolsonaro (PSL), facilita especulação imobiliária e torna quase impossível a desapropriação de imóveis

Marcelo Camargo/Agência Brasil

Tramita no Senado, com apoio declarado de 27 parlamentares, um terço da Casa, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 80/2019, de autoria do senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), que altera as regras de cumprimento da função social da propriedade. Na prática, o texto facilita especulação imobiliária – tornando o abandono de imóveis algo regular, por exemplo – e torna quase impossível a desapropriação de imóveis, ao estabelecer a necessidade de aprovação do poder legislativo. Para a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), o projeto é inconstitucional. Movimentos sociais veem ataque contra lutas por moradia e reforma agrária.

O texto altera os artigos 182 e 186 da Constituição, que tratam das propriedades urbanas e rurais, respectivamente. Segundo a proposta de Flávio Bolsonaro, a função social da propriedade estará cumprida quando o imóvel atender “ao menos uma das seguintes exigências…”. Atualmente, a Constituição exige o cumprimento de quatro requisitos: parcelamento ou edificação adequados; aproveitamento compatível com sua finalidade; e preservação do meio ambiente ou do patrimônio histórico, artístico, cultural ou paisagístico. As exigências não são alteradas.

Além disso, a PEC condiciona a declaração de descumprimento da função social pelo Poder Executivo – prefeitura, governos estaduais ou federal – a uma autorização prévia do Legislativo, ou por decisão judicial. E define que a desapropriação por descumprimento da função social terá de ser paga em valor de mercado. Na justificativa, o autor defende “diminuir a discricionariedade do poder público na avaliação de desapropriação da propriedade privada, tendo em vista que é um bem sagrado e deve ser protegida de injustiças”.

Já as regras de punição para proprietários que não cumpram a função social da propriedade estão mantidas na PEC 80. Sendo elas: parcelamento ou edificação compulsórios; imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo; e desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais.

O professor livre-docente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP) João Sette Whitaker ressaltou que a função social não é uma intervenção no direito de uso do proprietário. “Um prédio em uma área urbanizada ele tem infraestrutura urbana – acesso a água, esgoto, ônibus na porta, coleta de lixo – que tem custos sociais que são caros para o Estado e a sociedade e precisam ter uso. A legislação atual é bastante liberal, no sentido que se você fizer um hotel cinco estrelas você está cumprindo a função social. Vai gerar emprego, vai ter atividade econômica. Não é o sentido de ser para os mais pobres”, explicou.

Para Whitaker, a PEC reduz muito as obrigações do proprietário e abre argumentos jurídicos para manter intocados imóveis que estão abandonados à espera de valorização imobiliária. “O texto abre uma série de possibilidade de argumentos jurídicos para deixar imóveis vazios sem ser incomodado pelo poder público. Se o prédio for um hotel vazio e abandonado, vai se poder dizer que o aproveitamento dele é compatível com a função social, mas que o mercado não está permitindo o funcionamento”, disse.

O urbanista ressalta que a definição de desapropriação por valor de mercado limita as aplicações de regras municipais, como, por exemplo, a definição de valor venal para esses casos. E que torna inviável a muitas cidades a efetivação desse processo. “E ao colocar também a desapropriação por autorização legislativa, você emperra isso em um processo político. Hoje já existe a necessidade de decisão judicial, que é um processo de caráter técnico. É claramente a tentativa de defender os proprietários de ser questionados pelo poder público ao deixar um imóvel vazio, abandonado”, avaliou.

Para Raimundo Bonfim, coordenador da Central de Movimentos Populares (CMP), as alterações seriam um golpe no combate à especulação imobiliária e no desenvolvimento de políticas habitacionais. “A PEC 80 praticamente acaba com o conceito de função social da propriedade. Isso vai impossibilitar a desapropriação de imóveis e as políticas de reforma agrária, no campo, e habitação social, nas cidades. Isso vai agravar ainda mais a situação da população mais pobre e o déficit habitacional no país”, afirmou.

Texto inconstitucional

 

A PFDC encaminhou nota técnica ao Congresso Nacional indicando que o texto é inconstitucional. “A proposta subverte o conceito de propriedade inscrito na Constituição de 1988, comprometendo todo o seu sentido quanto à organização coletiva da vida, além de incorrer em ofensa aos princípios federativo e da separação de poderes. O direito à propriedade, tal como concebido na PEC 80, praticamente inviabiliza o gozo de muitos outros direitos fundamentais, como a dignidade, a moradia, a saúde e o meio ambiente”, defende a procuradoria.

O órgão do Ministério Público Federal (MPF) também aponta que o texto da PEC 80 liquida com a autonomia dos municípios ao definir os princípios do desenvolvimento urbano, expressos nos planos diretores, ao definir na Constituição quais são as hipóteses em que uma propriedade deixa de cumprir sua função social. “Há aqui a mais séria interferência na autonomia municipal”, destaca a PFDC.

A procuradoria destaca ainda que a Constituição Federal não define a propriedade como algo sagrado ou intocável. “O instituto da propriedade privada se submete a inúmeras conformações: deve atender à sua função social (art. 5º); cede diante de territorialidades indígenas (art. 231); é transferida, mediante desapropriação, às comunidades quilombolas (art. 68 do ADCT e STF: ADI 3239); está sujeita a confisco quando nela forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo (art. 243); e tem que atender às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor (art. 182)”.

Por Rede Brasil Atual

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