Réu confesso, crime 15: Capitã Cloroquina e o tratamento inexistente

Dos crimes cometidos pelo governo Bolsonaro na pandemia, o mais explícito, com provas materiais, é a adoção do “tratamento precoce” contra a Covid-19

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Bolsonaro ignora a ciência e mata brasileiros

7 de janeiro de 2020. A empresa White Martins envia e-mail ao Ministério da Saúde pedindo ajuda para levar aos hospitais do Amazonas cilindros de oxigênio, que começam a faltar no estado. A pasta ignora. Parece preocupada com outro assunto, como mostra um comunicado disparado no mesmo dia, a partir de Brasília, para a Secretaria de Saúde de Manaus.

No documento, a secretária de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde do ministério, Mayra Pinheiro, pede para visitar unidades de saúde da capital amazonense para “que seja difundido e adotado o tratamento precoce como forma de diminuir o número de internamentos e óbitos decorrentes da doença”. E Mayra, hoje conhecida como Capitã Cloroquina, acrescenta: “Aproveitamos a oportunidade para ressaltar a comprovação científica sobre o papel das medicações antivirais orientadas pelo Ministério da Saúde, tornando, dessa forma, inadmissível, diante da gravidade da situação de saúde em Manaus a não adoção da referida orientação”.

A nota é a confissão explícita de um dos crimes cometidos pelo governo Bolsonaro ao longo da pandemia no Brasil. Na palavras da Casa Civil, que organizou uma lista com 23 desses desmandos praticados pelo Executivo e que inspirou esta série Réu confesso: “O governo promoveu o tratamento precoce sem evidências científicas comprovadas”. Como mostra o comunicado, o ministério, à época comandado pelo general Eduardo Pazuello, não só pressionou pela adoção do “tratamento precoce” como levou uma comitiva até unidades de saúde para forçar a prescrição de medicamentos como a hidroxicloroquina.

O resultado todos conhecem: a visita de fato ocorreu no dia 11, assim como o lançamento do aplicativo TrateCov, que também recomendava o uso dos remédios. No dia 14, pacientes começaram a morrer asfixiados porque o ministério não se moveu para fornecer o oxigênio. O descaso levou Pazuello a ser processado pelo Ministério Público Federal (MPF).

Como surgiu o “tratamento precoce”?

O “tratamento precoce” para a Covid-19 não existe. Mas é um prato cheio para um governo que adotou o discurso negacionista sobre a pandemia, porque parte de uma hipótese científica real. Quando o novo coronavírus começou a se espalhar, cientistas passaram a testar várias drogas na tentativa de identificar alguma eficaz contra a Covid-19. Das que apresentaram bons resultados em testes de laboratório, a cloroquina e a hidroxicloroquina chamaram a atenção por serem baratas em relação às outras possíveis candidatas.

Logo o remédio se tornou objeto de centenas de pesquisas mundo afora. Os estudos iniciais, no entanto, eram pequenos, com poucos pacientes. E, em casos assim, é comum que os resultados sejam muito diferentes. Alguns podem indicar que a droga funciona, outros que não. Em abril de 2020, um artigo na renomada revista Nature já alertava para o exagero em torno da cloroquina. “Até agora, todos os estudos publicados são muito pequenos, não são robustos. Testes pequenos podem balançar para os dois lados — de ‘sim, isso parece ótimo’ até ‘não, isso faz mal'”, esclarecia Richard Whitlock, do Instituto de Pesquisa em Saúde Populacional do Canadá.

O alerta, porém, não servia aos interesses de Bolsonaro. Se havia estudos que traziam resultados positivos, mesmo que fossem pequenos e não confiáveis, ele os transformaria em verdade absoluta. Afinal, precisava convencer os brasileiros a seguirem suas vidas normalmente em nome da economia. E, para isso, nada melhor que alardear um remédio capaz de evitar ou curar a doença.

Dessa forma, no mesmo mês em que a Nature publicou sua reportagem, Bolsonaro dava mais uma de suas declarações enganosas: “Cada vez mais o uso da cloroquina se apresenta como algo eficaz”. E assim ele continuou a fazer, sempre ignorando a enxurrada de estudos que descartaram definitivamente a possibilidade de uma droga eficaz para a Covid-19, fosse antes ou depois da infecção.

Primeiro, os dois maiores estudos sobre os efeitos da droga em pacientes internados com Covid-19, as iniciativas Recovery, no Reino Unido, e Solidarity, da OMS, concluíram, em junho e julho de 2020, respectivamente, que a cloroquina e a hidroxicloroquina não são úteis para tratar a doença. Depois, artigos publicados nas maiores revistas científicas do mundo também concluíram que as drogas não evitam a doença, ou seja, não podem ser usadas como “tratamento precoce”. Alguns exemplos são artigos que saíram no British Medical Journal (BMJ), em agosto de 2020; na Jama, em setembro de 2020; e na The Lancet, em janeiro de 2021.

Politização

O artigo do BMJ, publicado em 10 de agosto, afirmava que já era o momento de “fechar o capítulo” sobre o uso da cloroquina e hiroxicloroquina para prevenir a Covid-19 e lamentava o fato de o tema ter sido “impulsionado mais por pressões políticas do que por abordagem científica verdadeira”. Duas semanas depois, Bolsonaro discursou mais uma vez invertendo a verdade: “Se ela [cloroquina] não tivesse sido politizada, muito mais vidas poderiam ter sido salvas dessas 115 mil que o país perdeu até o momento”.

No mesmo discurso, Bolsonaro admitiu que havia colocado Pazuello na Saúde por causa da cloroquina. “Alguns mudam de médico, eu mudei de ministro. Entrou o [Nelson] Teich e ficou 30 dias, depois, para não ter mais uma mudança, deixei um interino, o Eduardo Pazuello. (…) O Pazuello resolveu mudar a orientação e botou ali ’em qualquer situação, receitar-se a cloroquina'”.

Com Pazuello no comando, abriu-se definitivamente a oportunidade para que uma ala de médicos raivosos, que apoiaram Bolsonaro nas eleições, ganhasse mais espaço no governo. Foi o caso da pediatra cearense Mayra Pinheiro, que chamou a atenção das hostes bolsonaristas por seu antipetismo explícito. Em 2013, foi ela quem gritou a um médico cubano que desembarcava no aeroporto de Fortaleza, para participar do Programa Mais Médicos: “Volta para a senzala”.

A racista Capitã Cloroquina cresceu na gestão do general e se tornou o melhor exemplo de que não foram só os ministérios das Relações Internacionais, do Meio Ambiente, da Educação ou das Mulheres que acabaram tomados de assalto por uma ideologização cega e perigosa. O mesmo ocorreu na Saúde, que abrigou médicos capazes de usar estudos incipientes para colocar em prática políticas públicas que, na verdade, transformaram brasileiros em cobaias de drogas que vários estudos já diziam ser ineficazes. O prejuízo causado pela politização da saúde é tragicamente fácil de calcular: são 439 mil óbitos até agora.

Da Redação

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