Ricardo Zamora: Em defesa do Processo de Eleições Diretas (PED)

“O objetivo deste pequeno artigo é apresentar argumentos a favor da manutenção do PED e, mais do que isso, sustentar que as formas de exercício da democracia interna”

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Tribuna de Debates do PT

Votação do PED em João Pessoa

Há hoje no Partido dos Trabalhadores um intenso debate sobre os seus mecanismos de democracia interna, em especial uma forte crítica ao Processo de Eleições Diretas, o chamado PED, cujas votações se realizaram no mês passado e ainda se encontram na fase de julgamento dos recursos.

De um modo geral, as forças políticas internas de oposição à maioria nacional, autodenominadas de esquerda, vem defendendo, desde há mais tempo, o fim do PED como experiência organizativa e de democracia interna. O argumento básico dessa defesa é uma crítica ao mecanismo de eleição em urna, que substituiu a escolha das direções por encontros de militantes, trazendo consigo os vícios da democracia burguesa e levando a um processo despolitizado de arregimentação de eleitores sem critério.

O objetivo deste pequeno artigo é apresentar argumentos a favor da manutenção do PED e, mais do que isso, sustentar que as formas de exercício da democracia interna devem ter a sua tipologia ampliada, e não reduzida, e devem procurar se atualizar em relação às novas formas de relacionamento interpessoal em tempos de redes sociais e mundo virtual.

Com a apuração ainda em aberto, em razão do grande número de recursos e pesadas denúncias de fraude, a defesa do fim do PED reaparece com força e indignação. Diante do grande número de denúncias de irregularidades, retorna o argumento que identifica no processo em si, vale dizer, na eleição em urna, a causa das fraudes. Os termos, em geral, não são nada edificantes.

O companheiro Valter Pomar, num roteiro, aliás, muito completo e qualificado, resume as denúncias:
“E temos outro grave problema, se uma parte destes 300 mil votou sem compreender o que estava fazendo, sem ter conhecimento das diferentes alternativas; ou, em alguns casos, “votou” sem existir, como é o caso dos eleitores criados por fábricas de atas e por apurações fraudulentas.”

“Mas, para piorar, alguns setores do Partido adotam meios que corrompem a qualidade do processo: abuso de poder econômico, interferência de outros partidos, transporte de filiados, fabricação de atas, ingerências ilegais, alteração das regras no meio do processo, monopolização dos dados oficiais do processo por parte de uma única tendência etc.”

Se bem que Pomar ressalve que não atribui ao PED a causa da degeneração descrita acima, sustenta que “o PED facilita e estimula a degeneração, à medida que impõe uma dinâmica que traz junto todos os problemas dos processos eleitorais tradicionais, agravados por práticas que mesmo no terreno eleitoral conseguimos coibir e evitar com certo êxito.”

O Encontro estadual do PT do Rio Grande do Sul vai na mesma senda e aprova uma resolução sustentando a necessidade de fim do PED, defendendo que: “O Processo de Eleição Direta no PT converteu-se num processo viciado e não suficientemente representativo das lutas que ocupam a nossa ordem do dia. A falta de assembleias permanentes de militantes (grifei), consignados por uma estratégia comum de disputa no âmbito da ordem hegemonizada pela burguesia, faz com que a militância subestime o poder das classes abastadas.” E adiante: “entendemos que o nosso instrumento de combate a esta ordem orientada exclusivamente pelo cálculo e pelo lucro, deve estar isento da influência de arranjos burocráticos que artificializam maiorias produzidas através de gincanas eleitorais.”

Vejamos o argumento: o partido organiza um processo de eleições diretas para escolha de suas direções e delegados para o seu encontro nacional, à base de um filiado, um voto. Ocorrem fraudes em larga escala e a conclusão é que a responsabilidade compete ao processo e não aos fraudadores. A primeira conclusão é que é inadmissível que tais práticas continuem acontecendo. Sim, porque não é a primeira vez que se fazem este tipo de denúncia, as quais acabam ficando por isso mesmo. Logo, antes de se cogitar a mudança das regras, é preciso que as direções do partido identifiquem e punam os fraudadores.

A segunda conclusão, rasa, óbvia, para a qual basta o uso de um mínimo de bom senso, é que os fraudadores contumazes que corrompem o PED farão o mesmo num processo de encontro de militantes. A criatividade é imensa. Por hipótese, nas cidades onde não ocorrerem encontros os eventuais fraudadores poderão persistir nas “fábricas de atas”; poderão, também por hipótese, nos encontros, credenciar pessoas, liberá-las e reter o crachá.

A Resolução do Encontro estadual do PT do Rio Grande do Sul merece ser lida e examinada com atenção (ver nota 2, acesso à Resolução na íntegra). O problema das distorções e fraudes não seria de responsabilidade daqueles que a praticam, mas do processo de eleições diretas, ou seja, chamar os filiados a decidirem, repita-se, à base de um filiado, um voto, seria um procedimento corruptor, por carregar os vícios da democracia burguesa. Os militantes (alguns dos quais, inclusive, os praticantes das fraudes) seriam, em si mesmos, virtuosos e bons, desde que reunidos em “assembleias permanentes”.

Duas questões precisam ser ditas: a primeira é que este argumento é só aparentemente radical e de esquerda, na verdade trata-se de um argumento autoindulgente, que absolve a militância e a própria direção do partido dos erros e vícios que ela mesmo pratica. Não por acaso, além da CNB, a quase totalidade das correntes (excetuando-se apenas parte da Resistência Socialista e a Articulação de Esquerda) votaram, na Executiva Nacional,3 por não apurar as fraudes ocorridas neste último PED. Não haveria problema, o mal está fora de nós, está nos procedimentos burgueses, que seriam a votação de todos os filiados.

A segunda questão, não menos grave, diz respeito à concepção de partido subjacente a estes argumentos. Se não considerarmos que a locução “assembleias permanentes de militantes” é apenas uma formulação irrefletida, seria o caso de perguntar como estes militantes reunidos em assembleias permanentes proveriam o seu sustento? A resposta é simples, estes militantes são os funcionários da máquina partidária, ou seja, profissionalizados das correntes, assessores dos mandatos e estruturas políticas congêneres.

Em períodos não revolucionários, em que não há um ascenso do movimento de massas, a vida partidária é, em larga medida, alimentada pelas estruturas profissionais da política, pela máquina partidária, pela máquina das correntes, dos mandatos, das estruturas sindicais. Neste sentido, limitar o universo dos chamados a decidir aos militantes orgânicos implica limitar severamente a democracia partidária.

O Partido dos Trabalhadores é um partido de militantes mas é, também, um partido de massas. Segundo todas as pesquisas de opinião, é o partido preferido da população brasileira, conta com um eleitorado cativo e milhões de pessoas que o tem como referência política. São ativistas políticos e sociais, trabalhadores sindicalizados, dirigentes e militantes de base, ativistas culturais, ativistas de movimentos sociais os mais diversos, pessoas progressistas e/ou que se identificam como de esquerda.

Todo este amplo leque de pessoas possui variados graus de relação com o partido, sendo que a amplíssima maioria não possui vínculos orgânicos ou, se os possui, são fluidos e eventuais. Há também – creio que o leitor deste artigo haverá de concordar – milhares de ex-militantes orgânicos, companheiros que já tiveram uma participação militante mais efetiva, seguem acompanhando os debates, mas não se dispõem a participar das assembleias de militantes, mesmo que não permanentes.

A grande tarefa que deve mobilizar a nossa reflexão política tem que ir no sentido contrário ao da Resolução antes referida, ou seja, ao invés de limitar o universo daqueles que podem tomar decisões dentro do PT àquelas pessoas que se dispõem (e tem condições práticas de fazê-lo) a participar de encontros e assembleias, devemos conceber vários mecanismos de democracia interna, que permitam dar protagonismo a uma ampla tipologia de ativistas e militantes.

PED, prévias, encontros de militantes, encontro de delegados, plenárias abertas para debate de temas específicos são mecanismos básicos que devem ser mantidos e aprimorados. Além destes, devemos criar novos mecanismos, como, por exemplo, a instituição de primárias para escolha de candidatos majoritários, com votação aberta a não filiados. Este mecanismo, que não possui previsão na legislação eleitoral brasileira, é largamente utilizado em vários países com resultados positivos no sistema político.

O objetivo aqui não é exatamente a defesa de um modelo específico de democracia interna, mas é o de refutar a ideia de que um único modelo – encontro de militantes – seja compatível com a natureza do PT como um grande partido de esquerda num país das dimensões e complexidade do Brasil. É certo que o Processo de Eleições Diretas precisa ser aprimorado, os vícios devem ser eliminados (ou reduzidos substancialmente), medidas de integridade devem ser introduzidas e, principalmente, as fraudes devem ser combatidas de maneira implacável pelo conjunto da militância.

Por fim, uma palavra sobre a relação entre democracia interna e os novos recursos de comunicação (redes sociais). No passado recente, menos de quatro décadas, a informação política do partido possuía escassos recursos de difusão. Afora a imprensa tradicional, os militantes recebiam informações pelos veículos das correntes políticas, documentos do partido (jornais, boletins, xerox de documentos) e nada mais. As reuniões políticas eram, via de regra, o único momento em que o militante poderia receber informações e análises políticas.

Esta realidade transformou-se totalmente. Hoje todas as informações políticas, posições do Partido, opiniões das correntes internas, formulações de intelectuais de esquerda, etc, estão instantaneamente na rede, com amplo acesso e divulgação. A questão agora é selecionar, num ambiente de uma oferta infinita de informações, aquilo que será lido e valorizado politicamente.

Esta nova realidade comunicacional, no entanto, não tem sido aproveitada adequadamente pelo PT. Há bem pouco tempo atrás nutríamos a expectativa de que comunicação em rede favoreceria a esquerda, pelo seu potencial de quebrar o monopólio da mídia. A última eleição presidencial, no entanto, demonstrou o contrário, as forças da extrema direita revelaram-se muito mais capazes de trabalhar com estes instrumentos para a disputa política.

É preciso que o PT recupere terreno neste domínio, utilizando-se dessas ferramentas não apenas para a disputa na sociedade, mas também para atualizar suas formas organizativas. Reuniões virtuais das instâncias de direção, das instâncias de base, processos de consulta virtual aos militantes e filiados são alguns mecanismos que já deveríamos ter adotado.

*Clique aqui e acesse o texto com as notas de rodapé

Ricardo Zamora é advogado, mestre em Direito Público e militante do PT desde 1984

ATENÇÃO: ideias e opiniões emitidas nos artigos da Tribuna de Debates do PT são de exclusiva responsabilidade dos autores, não representando oficialmente a visão do Partido dos Trabalhadores

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