Rui Falcão: Hora de Avançar

Escrevo ainda sob o impacto da chacina dos trabalhadores do semanário francês Charlie Hebdo, crime brutal que causou uma onda mundial de indignação, protestos e solidariedade – à qual nos…

Escrevo ainda sob o impacto da chacina dos trabalhadores do semanário francês Charlie Hebdo, crime brutal que causou uma onda mundial de indignação, protestos e solidariedade – à qual nos somamos. Começo por aqui porque, mais que um atentado à liberdade de expressão, o ataque covarde expõe uma faceta abominável dos tempos atuais: o da intolerância e do fanatismo, cujo combate pelos partidos democráticos deve ser tarefa permanente.

“É hora de materializar o programa de governo e de fazer avançar reformas imprescindíveis para um Brasil mais democrático”

A tentativa de eliminação do outro, do discordante, da minoria, do diferente – que escapa à leitura tradicional do econômico e do político na luta de classes – são recorrentes na história. E agora, num mundo multipolar, com o capitalismo em grave crise, a vigilância contra a intransigência e o fundamentalismo exige ações práticas, compromissos políticos e respostas institucionais.

Não por outra razão, integra o nosso programa e nossas plataformas o repúdio a todas as formas de discriminação e preconceito: o racismo, a xenofobia, o machismo, a homofobia, que para serem erradicados exigem, além da repulsa quotidiana, iniciativas no campo da disputa ideológica, da educação e da cultura.

Passadas as eleições, com a quarta vitória consecutiva do projeto democrático-popular, que desafiou o atual sistema de poder e evitou o retrocesso neoliberal das candidaturas adversárias, é hora de materializar o programa de governo e de fazer avançar reformas imprescindíveis para um Brasil mais democrático, mais inclusivo, mais justo e com mais desenvolvimento sustentável.

Fazê-lo requer resolver a contradição entre o desejo de mudanças, de reformas, manifestado pela população nas últimas eleições, e a correlação de forças desfavorável presente nas instituições do Estado. Em todas elas, não apenas no “governo de coalizão”, policlassista, ou no Congresso Nacional, agora mais conservador que antes.

Para além, portanto, das alianças multipartidárias e da necessária sustentação do governo Dilma, é vital superar a governabilidade meramente institucional e contribuir para ampliar a pressão social organizada, a chamada luta de massas, em defesa de reformas estruturais.

Vencer este desafio vai exigir do PT um renascimento, uma retomada de valores de suas origens, entre os quais a ideia fundadora da construção de uma nova sociedade. Como já temos assinalado, ao nosso V Congresso, em junho próximo, caberá promover este reencontro, nos marcos do País de hoje, guardadas as diferenças conjunturais, com o PT dos anos 80, quando nos constituímos num partido com vocação de poder e transformação – e não um partido do melhorismo. Toda renovação implica vencer resistências, obstáculos, interesses em choque.

Daí porque propusemos conferências abertas, a fim de recolher contribuições, críticas e novas energias de fora, pois o PT não pode encerrar-se em si mesmo, numa rigidez que dificulta o acolhimento de novos filiados, ou de novos apoiadores que não necessariamente aderem às formas de organização partidária.

Queremos um partido que pratique a política no cotidiano, presente na vida do povo, de suas agruras e vicissitudes e não somente que sai a campo a cada dois anos, quando se realizam as eleições. Tal retomada deve ser conduzida pela política e não pela via administrativa. Ela impõe mudanças organizativas, formativas, de atitudes e culturais, necessárias para reatar com movimentos sociais, juventude, intelectuais, organizações da sociedade – todos inicialmente representados em nossas instâncias e hoje alheios, indiferentes ou, até, hostis em virtude de erros políticos cometidos nesta trajetória de quase 35 anos.

Portanto, dar mais organicidade ao PT, maior consistência política e ideológica às direções e militantes de base, combater os sinais de burocratização, afastar o pragmatismo exagerado, reforçar os valores da ética na política, não dar trégua ao “cretinismo” parlamentar – tudo isso é condição para atingir nossos objetivos intermediários e estratégicos.

Evidente que, neste percurso, é necessário atualizarmos nosso conhecimento e compreensão da sociedade brasileira, do seu estágio atual, das classes sociais e forças em presença, da situação da economia, do cenário internacional. Sem o que, fica impossível traduzir propostas gerais em uma política efetiva. Isto é, como fazer valer as mudanças que propomos numa situação concreta, historicamente determinada.

Quando falo da urgência em estender nossas preocupações a uma leitura abrangente e profunda da realidade é porque a concentração quase exclusiva da atividade partidária na disputa político-eleitoral-institucional acarretou um duplo desvio.

Primeiro, abriu um grande vazio de análise, reflexões e iniciativas sobre o que vem acontecendo no Brasil e no mundo. Segundo, porque a conquista de votos não tem se misturado à luta de massas, de tal sorte que se possam criar condições de construir uma força política organizada e estável, um verdadeiro bloco histórico capaz de inverter a correlação desfavorável na sociedade e de impulsionar mudanças estruturais.

“É vital superar a governabilidade meramente institucional e contribuir para ampliar a pressão social organizada”

Nas condições atuais, urge conter a ofensiva dos conservadores e da direita – que recrudesceu nas eleições e ganhou fôlego com o apoio da mídia monopolizada e as denúncias de corrupção – e, ao mesmo tempo, articular uma frente progressista, com partidos, centrais sindicais, movimentos sociais da cidade e do campo, unificados em torno de uma ampla plataforma de mudanças, que tenha no cerne a reforma política e a democratização da mídia. E que contemple, também, a reforma tributária, a reforma agrária e a exigência de que o chamado ajuste na economia não resulte no cancelamento de direitos – tal como a presidenta prometeu na campanha.

Inconformados com sua quarta derrota consecutiva, os opositores do nosso projeto, que desta vez receberam apoio ”militante” inclusive do exterior, atuam para tirar legitimidade de nossa vitória. Operam para forçar o governo, premido pelo impacto da crise global no País, a adotar o programa derrotado nas urnas. Tentam comprometer-nos com a corrupção (estrutural ao capitalismo), sendo que ninguém mais que os governos Lula e Dilma, do PT, vêm dando um combate implacável à corrupção e à impunidade.

Os malfeitos descobertos e investigados na Petrobrás – que devem ser objeto de punição, após o devido processo legal – dão pretexto a um ataque permanente à empresa, que é patrimônio do povo brasileiro. Os que assim procedem – como no passado outros da mesma estirpe já o fizeram – pretendem, em última instância, revogar a política de conteúdo nacional e, ao proporem a volta das concessões, cancelar o regime de partilha, em que a Petrobrás é a operadora única das reservas do pré-sal.

A retórica oposicionista, amparada pela mídia, inventa uma suposta oposição entre Dilma e o PT, numa inexistente luta encarniçada entre tendências para ocupar maiores espaços no aparato estatal. Na mesma linha, fabulam uma discordância, seguida de “afastamento” entre Dilma e Lula, que estaria descontente com os rumos do governo. Em última instância, concentram ataques em nossas duas maiores lideranças, tendo como alvo preferencial a destruição do PT.

Embora os ataques do imediato pós-campanha tenha arrefecido, urge a construção de uma agenda comum de partidos e movimentos, em torno de uma plataforma de reformas. Este é o caminho mais indicado para romper a defensiva política, alterar a correlação de forças e reassumir a iniciativa, inclusive tendo em vista recuperar, nas eleições municipais de 2016, o terreno perdido pelo campo progressista no último pleito, quando, embora conquistando a Presidência da República, reduzimos as bancadas parlamentares.

Já se construiu um amplo consenso entre a necessidade da reforma política – ainda que seus contornos, amplitude e iniciativas discrepem entre si. Não cabe aqui redesenhar nossa proposta, que difere de outras, mas o fato é que há plena convicção de que o fim do financiamento empresarial e a participação popular são componentes inegociáveis – ao tempo em que entendemos fundamental a convocação de um plebiscito e de uma constituinte exclusiva para uma reforma mais ampla, haja vista a resistência do Congresso em efetivá-la.

Para quem duvidava da importância de ampliar a liberdade de expressão, controlada por monopólios da imprensa, da imagem e do som, a recente campanha eleitoral, sobretudo na última semana, escancarou o conluio da grande mídia com as classes dominantes e os partidos que representam seus interesses.

“Reformas como as da mídia e do sistema político-eleitoral não são meramente corretivas”

Se lutamos tanto para abolir a censura e inscrever na lei maior o direito fundamental da liberdade de expressão de pensamento, é tarefa nossa fazer regulamentar os artigos da Constituição que proíbem a existência de monopólios e oligopólios na comunicação, que preveem a coexistência dos sistemas público, privado e estatal, e que dispõem sobre a obrigatoriedade da produção de conteúdo regional.

A este respeito vale assinalar a manifestação do novo ministro da Comunicação, Ricardo Berzoini, que se comprometeu a abrir um debate público e amplo sobre a regulação da mídia, bem como as primeiras movimentações para pautar, na Câmara dos Deputados, o projeto de lei do senador Requião (PMDB-PR) sobre o direito de resposta, já aprovado no Senado.

Reformas como as da mídia e do sistema político-eleitoral não são meramente corretivas, assim como as urgentes reformas agrária e do sistema tributário devem possibilitar um novo mecanismo para o desenvolvimento do País e não um reparo emergencial para um crescimento mais acelerado (embora também necessário no momento).

Eis porque insisto em que o ajuste programado deve conter-se nos limites traçados pela presidenta: nada de arrocho, de recessão, de cancelamento de direitos ou desemprego. Que o ajuste fiscal propicie liberar recursos para investimentos públicos em infraestrutura e áreas sociais, sem gravar ainda mais a dívida pública com juros para rentistas.

Do ponto de vista da reforma tributária, é inconcebível não alterar o sistema atual, em que os impostos indiretos, como o IPI e o ICMS, representam quase metade da carga tributária. São estes impostos que oneram a população na aquisição de bens e serviços. Ricos e pobres pagam a mesma alíquota, o que configura clara injustiça.

Já o imposto de renda representa ínfimos 20% da carga total, ao passo que os tributos sobre o patrimônio são irrelevantes, preservando assim os privilégios dos mais endinheirados. Mais grave ainda: estudos revelam que enquanto os que ganham até dois salários mínimos recolhem pouco mais de 50% da renda ao Tesouro, os que ganham acima de 30 mínimos respondem por pouco menos de 30%. Uma reforma tributária e fiscal que desonere a produção e os salários, que institua uma inversão do peso entre impostos diretos e indiretos, e que grave a especulação e o rentismo, deve integrar uma plataforma comum de lutas de partidos, centrais sindicais, movimentos e organizações da sociedade.

O debate gerado pela composição do novo ministério recolocou na ordem do dia a atualidade da reforma agrária. Não porque os governos Lula e Dilma renegassem a sua necessidade e deixassem de apoiar as justas reivindicações dos movimentos de luta pela terra. É que, apesar de tudo que se fez, ainda é grande a concentração fundiária no País, a persistência das propriedades improdutivas, a reminiscência de trabalho análogo à escravidão, o grande número de acampados e assentados ainda sem a devida assistência.

Assim é que, ao lado das demandas reafirmadas pelos lutadores da reforma agrária – cuja maioria das bandeiras também encampamos –, o ministro Patrus Ananias reafirmou seu propósito de fazer valer a função social da propriedade, inscrita na Constituição. Também se dispôs a atualizar os índices de produtividade da terra, um dos critérios para desapropriação de áreas para novos assentamentos.

Neste último aspecto, precisará de forte apoio dos partidos progressistas e dos movimentos a fim de enfrentar a feroz resistência de latifundiários e da bancada ruralista no Congresso, como já ocorreu sempre que se pretendeu atualizar indicadores que datam dos anos 70. De lá para cá, a produtividade da agricultura brasileira multiplicou-se quase quatro vezes, praticamente o dobro do que ocorreu nos Estados Unidos no mesmo período.

Entretanto, as aferições para desapropriações ainda respeitam os parâmetros do século passado! Para não me estender mais, quero reafirmar uma diretriz de uma resolução unânime do Diretório Nacional do PT, que nos anima a todos. Se queremos que a presidenta Dilma cumpra um segundo mandato ainda melhor que o primeiro (e confiamos que assim será) teremos que reunir mais forças que as do nosso partido.

Considero fundamental que, desde agora, nos unamos com partidos de esquerda para desencadear um amplo processo de mobilização e organização dos milhões de brasileiros e brasileiras que saíram às ruas para apoiar Dilma Rousseff. Um amplo movimento pelas reformas estruturais e também para defender nossos direitos humanos, nossos direitos à democracia, ao bem estar social, ao desenvolvimento, à soberania nacional.

Rui Falcão é presidente nacional do Partido dos Trabalhadores

(Artigo originalmente publicado na revista Esquerda Petista, edição fev/2015)

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