Sai camponesa| O que a mudança na lata de Leite Moça revela sobre a indústria do ultraprocessado

Nestlé retira camponesa do rótulo de leite condensado e alega substituir por ‘mulheres reais’. Entenda como a visão utilitarista da pauta feminista pode promover a invisibilidade da mulher do campo e esconder a lógica nefasta do marketing de alimentos ultraprocessados

Ana Clara, Elas Por Elas

Nesta semana, a Nestlé resolveu dar um giro de marketing em um dos seus principais produtos alimentícios , que faz parte do cotidiano brasileiro: a lata de leite Moça. Na comemoração de 100 anos do produto, a marca retirou a mulher camponesa que estampava a lata desde sempre e substituiu por “mulheres reais”. Com um briefing que alega querer mostrar ” sete mulheres reais nas embalagens, com as histórias de vida delas contadas nos novos seis modelos de lata”, a campanha de marketing busca promover o produto a partir de um discurso que deriva do movimento feminista, principalmente da última década, sobre a diversidade das mulheres e suas realidades.

No entanto, o que era para ser mais um tropeço da indústria publicitária, ou uma campanha sem alguém para dizer ‘acho que não vai dar certo’, acabou sendo um elemento importante de avaliação da estratégia da imagem da Nestlé e da visão utilitarista e mercadológica da pauta feminista.

“É isso que acontece quando uma empresa que visa o lucro se apropria do debate feminista para fazer campanha de marketing. Dizer que agora vai falar em ‘mulheres reais’ em detrimento da imagem da mulher do campo não faz sentido algum. Não se inclui a diversidade de mulheres, invisibilizando toda uma categoria delas”, explica Anne Moura, secretária nacional de mulheres do PT.

Purplewashing é o nome que se dá à injustificada apropriação das pautas feministas por parte de organizações ou pessoas, mediante o uso de técnicas de marketing e relações públicas, que oculta e esvazia o sentido político da luta pela igualdade de gênero e suas transversalidades. Quando se lança uma campanha cuja estratégia é substituir a ‘camponesa’ por ‘mulheres reais’, ‘brasileiras’ ou ‘consumidoras’, assume-se então que a camponesa não ocupa esses lugares.

Então que ‘mulher do campo’ é essa que ocupou a lata de leite Moça ao longo de tantos anos?

Essa pergunta que se faz a partir do imaginário social tem um correspondente na realidade que materializa a visão meramente utilitarista da pauta feminista pela empresa.

“Esses caras mercantilizam tudo. E nossos corpos, ainda que não sejam o tipo barbie, continuam sendo mercadorias. E a verdade é que como quem faz essas campanhas, em geral são homens brancos que morreriam de pneumonia se pisassem na terra e de fome se precisassem plantar uma horta, eles nos usam pra vender produtos em uma lógica ridícula”, aponta Agnes Franco, jornalista, assessora da Secretaria Nacional de Meio Ambiente e Desenvolvimento – SMAD/PT.

Na esteira dessa reflexão, fica o questionamento sobre como a verdadeira ‘mulher do campo’, não aquela estampada na lata, mas aquela que planta e colhe, abala a lógica da indústria dos ultraprocessados.

A imagem de uma mulher capaz de separar sementes, arar a terra, escolher a melhor época para plantio e garantir o alimento saudável de tanta gente. As camponesas no geral que conhecem os benefícios dos alimentos e ervas para a saúde, são guardiãs de sementes crioulas, naturais em oposição aos transgênicos. São elas que cuidam de filhos, cônjuges e parentes em caso de envenenamento por agrotóxicos e sofrem os impactos das mudanças climáticas e são as principais vítimas da monocultura.

De fato, essa imagem não combina com uma empresa que lucra com o adoecimento da população. No final de maio, o jornal The Financial Times publicou uma reportagem em que a Nestlé reconhece que mais de 60% dos seus produtos não são saudáveis. Dentre eles, está o leite condensado, famoso leite Moça, que contém alta dosagem de açúcar — informação que está no cerne da famosa ‘guerra dos rótulos’.

Esse é outro aspecto importante sobre esse giro da Nestlé, pois não se trata apenas do fato de estar uma camponesa, uma dona de casa ou uma empresária.

Ao longo da última década, a sociedade civil tem travado uma verdadeira guerra dos rótulos para garantir que as marcas sejam mais transparentes em relação aos componentes que podem fazer mal à saúde.

Criar toda uma campanha de marketing que busca fazer o/a consumidor/a se “emocionar” pela história de vida de uma pessoa também pode tirar o foco da leitura sobre como é feito aquele alimento, desviando do quão nocivo à saúde ele pode ser. Diante da pandemia de um vírus que ataca o sistema imunológico, a alimentação inadequada ou pouco eficiente pode agravar ainda mais a crise de saúde pública e coletiva que o país atravessa.

“As últimas epidemias todas estão relacionadas ao modo como nos alimentamos (gripe suína, gripe aviária, covid, até mesmo a aids) ou como produzimos nossos alimentos. Essa forma totalmente insustentável de produção não foi inventada pelas mulheres, mas, são elas as maiores vítimas se não direta, indiretamente. E, neste caso em especial, a Nestlé, Unilever e tantas outras indústrias de alimentos, são o resultado de uma sociedade doente, com uma lógica patriarcal que não privilegia a saúde, tampouco equidade”, finaliza Agnes.

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