Silvio Melgarejo: “Nossos núcleos são poucos e precários”, já dizia o 5º Encontro, de 1987

Como construir um partido capaz de mobilizar o conjunto dos seus filiados para participar ativamente da formulação e implementação da sua política?

Fernanda Estima/Acervo Sérgio Buarque de Holanda
Tribuna de Debates do PT

Delegados no 1º Congresso Nacional do PT

Como construir um partido capaz de mobilizar o conjunto dos seus filiados para participar ativamente da formulação e implementação da sua política? Para os fundadores do PT isto poderia ser conseguido através da organização destes filiados em unidades básicas de construção partidária chamadas “núcleos de base”.

O QUE SÃO NÚCLEOS DE BASE

A primeira versão do estatuto do PT, da época em que o partido foi fundado, diz que “os filiados de um mesmo domicílio eleitoral organizar-se-ão em Núcleos de Base, por local de moradia, por categoria profissional, por local de trabalho ou por movimentos sociais”, e que as funções destes núcleos de base são “organizar a ação política dos filiados, segundo a orientação dos órgãos de deliberação e direção partidária, estreitando a ligação do Partido com os movimentos sociais”; “emitir opinião sobre as questões municipais, regionais e nacionais que sejam submetidas a seu exame pelos respectivos órgãos de direção partidária”; “aprofundar e garantir a democracia interna do Partido dos Trabalhadores”; “promover a educação política dos militantes e filiados”; “sugerir aos órgãos de direção partidária consulta aos demais Núcleos de Base sobre questões locais, regionais ou nacionais de interesse do Partido”; e “convocar o Diretório Municipal, nos termos do art. 22 deste Estatuto”.

Hoje, modificado por resoluções aprovadas nos congressos e encontros nacionais que o PT vem realizando desde aquele tempo, o Estatuto diz que “são considerados Núcleos quaisquer agrupamentos de pelo menos 9 (nove) filiados ou filiadas ao Partido, organizados por local de moradia, trabalho, movimento social, categoria profissional, local de estudo, temas, áreas de interesse, [e] atividades afins, tais como grupos temáticos, clubes de discussão, círculos de estudo, coletivos nas redes sociais da internet e outros”. A atual versão do Estatuto diz também que os núcleos “são instrumentos fundamentais da organização partidária e da atuação do PT nas comunidades e nos setores, e de integração [do partido] com os movimentos sociais”, mantendo praticamente a mesma redação da primeira versão para o artigo em que são descritas as suas funções.

O MITO DO “PARTIDO DOS NÚCLEOS”

Os núcleos de base, como conceito, tem sido símbolos da vocação democrática do PT, desde a fundação do partido. O problema é que, na prática, raramente têm funcionado. Creio que há consenso no PT hoje de que eles são muito poucos e que funcionam, quase sempre, precariamente, atendendo a públicos bastante reduzidos. E algo que frequentemente se ouve, ao lado dessas constatações, é que o PT precisaria voltar a ser o que foi no passado, quando supostamente teria tido, em grande quantidade, núcleos de base fortes e atuantes, com intensa participação dos filiados.

Digo “supostamente” porque estou convencido de que este passado, que tanto se evoca e tanto se exalta, na verdade nunca existiu, de que o PT nunca teve a sua base realmente organizada em núcleos, que isto não passa de um mito, um mito que precisa ser desfeito, porque ajuda a mascarar as verdadeiras causas da situação dramática que temos hoje, de completa desorganização da base de filiados do partido. Pois se se admite que houve um momento em que a política de núcleos funcionou de maneira satisfatória, deduz-se que nesse momento o PT sabia muito bem o que fazer para alcançar tal resultado, e que se os núcleos, de uma hora para outra, deixaram de funcionar, não haveria de ser por outra razão senão o seu deliberado abandono pelos dirigentes e pelos próprios filiados de base, subitamente tomados pelo desinteresse em participar e garantir que eles funcionassem.

Estou convencido de que não foi nada disso, de que, na verdade, a política de núcleos de base do PT teve problemas desde o início para ser desenvolvida e que nunca alcançou, minimamente, os objetivos para os quais foi concebida.

UM BALANÇO QUE ESTÁ POR SER FEITO

Diz uma resolução aprovada pelo 1º Congresso Nacional do PT, de 1991, que “ainda está por ser feito um balanço global – histórico, político e organizativo – da experiência de construção” do PT e que “é o estudo” dessa experiência “que pode servir como inspiração fundamental para as alterações, que se fazem necessárias, na forma de construir” o partido.

Pois passaram-se já 25 anos desde o 1º Congresso, este balanço global continua por ser feito e tornou-se agora absolutamente urgente por força da necessidade imperiosa de se preparar o partido para enfrentar adequadamente a violenta ofensiva em que direita e burguesia se empenham contra a esquerda e a classe trabalhadora.

Fazer um balanço global da construção do PT significa resgatar a história política e administrativa do partido e avaliar os resultados das escolhas feitas à luz dos seus valores, princípios e objetivos estratégicos, sem deixar de considerar as circunstâncias em que cada decisão foi tomada.

Como toda história é feita de versões construídas a partir de documentos, uma pesquisa sobre a história política e administrativa do PT não pode deixar de ter como fonte primária e ponto de partida os documentos coletivamente concebidos e democraticamente aprovados como resoluções nos congressos e encontros nacionais que o partido vem realizando desde a sua fundação.

E o que estes documentos atestam claramente é que o PT, de fato, nunca foi o “Partido dos Núcleos de Base” que sempre pretendeu ser e que a democracia interna do PT sempre foi extremamente limitada, extremamente prejudicada por problemas administrativos, problemas graves de organização e funcionamento interno.

5º ENCONTRO NACIONAL DO PT

Em 1987 o Brasil vivia um momento de grande efervescência política e ascenso do movimento de massas. As greves se multiplicavam por todo o país. Era o primeiro ano da Constituinte que deu origem à Carta Magna de 88 e as diversas frentes de luta por direitos de cidadania se mobilizavam intensamente pela aprovação das “emendas populares” que apresentavam. O PT tinha apenas sete anos de existência e uma atuação fortemente caracterizada pela defesa da independência política da classe trabalhadora em relação à burguesia. Nestes dias de uma fase que todo petista considera a época de ouro do PT, o partido realizou o seu 5º Encontro Nacional. E neste 5º Encontro Nacional, em 1987, aprovou-se uma resolução com afirmações sobre a organização e funcionamento do partido que poderiam perfeitamente ser aprovadas pelo 6º Congresso, deste ano em que estamos, porque correspondem fielmente à realidade do PT dos nossos dias.

CRISE ORGANIZATIVA

Diz a resolução do 5º Encontro que “continuamos vivendo uma crise organizativa no PT”; que “hoje, estão evidentes as limitações de nossa organização, de nossas instâncias e quadros dirigentes”; que “a cada dia que passa, aumentam as tarefas e cresce nossa base social, mas a nossa estrutura não corresponde às necessidades da luta política”; que “milhares de militantes ainda permanecem alheios às suas instâncias organizativas”; que, “atualmente, nossos núcleos de base são poucos e, na maioria das vezes, precários”; que “os núcleos estão abandonados”, “desprestigiados” e que “têm enfrentado sérias dificuldades para se generalizarem e se constituírem em organismos de massa”; que “não fomos capazes de dar a devida atenção às tarefas que a construção do PT exige”; e que o PT “até hoje, não conseguiu formular nem implementar uma política de organização que estimulasse o crescimento do Partido do ponto de vista orgânico (nucleação, formação política, finanças etc.)”.

O texto da resolução registra a “fragilidade econômica” do PT, que já levava na época ao “fechamento de sedes de núcleos e Diretórios” e inviabilizava completamente a imprensa partidária, sem a qual estabelecia-se um quadro geral de “carência de informação política dos militantes”.

Havia, segundo o 5º Encontro, no que diz respeito à política de organização da base do partido em núcleos, “uma enorme distância entre os nossos desejos e a realidade”.

A resolução aprovada diz ainda que “ao lado da precariedade de nossa organização na base do Partido, outro ponto de estrangulamento é a falta de uma real centralização do Partido, de unidade de ação por parte dos seus militantes”. Diz que “a capacidade de atuação centralizada” depende, entre outros fatores, do “funcionamento pleno das instâncias de direção partidária”, mas que “o funcionamento das nossas instâncias diretivas é extremamente precário”.

Esta era a situação do PT em 1987. Em que difere da situação que temos hoje?

ORIGEM DA CRISE

O 5º Encontro diz que “a fragilidade das estruturas orgânicas do PT teve início na campanha eleitoral de 1982, quando diluímos nossos núcleos e Diretórios em comitês eleitorais de candidatos que, em sua maioria, terminaram em 15 de novembro daquele ano, com o fim da campanha”. Diz também que “de lá para cá, o PT encaminhou com relativo êxito algumas campanhas gerais, porém, até hoje, não conseguiu formular nem implementar uma política de organização que estimulasse o crescimento do Partido do ponto de vista orgânico (nucleação, formação política, finanças etc.)”, e que “essa fragmentação tem muito a ver com a postura que se tomou em relação à construção partidária”, “mais que isto, tem a ver com a visão do papel do Partido que estamos construindo”.

A afirmação da resolução de que o PT “até hoje, não conseguiu formular nem implementar uma política de organização que estimulasse o crescimento do Partido do ponto de vista orgânico” indica que o PT, até àquele ano de 1987, nunca tinha tido esta política, o que explica a fragilidade das estruturas orgânicas apontada. Não foi, portanto, a diluição dos núcleos e diretórios em comitês eleitorais que fragilizou estas instâncias. O que aconteceu foi exatamente o contrário. A fragilidade dos núcleos e diretórios é que provocou as suas diluições, porque os tornou incapazes de concorrerem com os comitês eleitorais como polos de atração da militância.

A campanha de 82, por conseguinte, não deu início, apenas revelou debilidades orgânicas que já existiam desde a fundação do partido, causadas pela falta, mencionada, de “uma política de organização que estimulasse o crescimento do Partido do ponto de vista orgânico (nucleação, formação política, finanças etc.)”. A própria resolução do 5º Encontro reconhece isto ao dizer que “as campanhas gerais de intervenção na conjuntura” – e as campanhas eleitorais são também campanhas de intervenção na conjuntura – “se por um lado aumentam as simpatias pelo PT, por outro lado, dissociadas de uma correta política de construção partidária, não conseguiram traduzir-se em aumento do nível de organização e enraizamento do PT na realidade social”; e que “ocorre, por vezes, o inverso, ou seja, o Partido geralmente sai das campanhas mais disperso e desorganizado, portanto, mais fraco para resistir a novos avanços da burguesia”. A resolução diz que “o esforço de intervenção na conjuntura, por meio de campanhas gerais, não foi acompanhado por uma política clara de reforço, politização e expansão da nucleação”, e que “o resultado [disso] foi a drenagem de forças e elementos para ações gerais e conjunturais, levando a um colapso a estrutura dos núcleos e Diretórios”.

DUAS TESES EQUIVOCADAS

A resolução do 5º Encontro prova serem equivocadas as duas teses predominantes no PT hoje sobre a origem dos problemas de organização e funcionamento interno do partido. Há quem considere que estes problemas surgiram em 1995, quando o 10º Encontro aprovou a adoção da estratégia de conciliação de classes, tornando a organização e mobilização de base não só desnecessária como contraproducente; e há quem defenda que os problemas começaram a surgir e cresceram à medida que o partido foi conquistando mandatos para governos e parlamentos, que absorveram os quadros mais qualificados e experientes, reduzindo a eficácia do trabalho da direção partidária.

Estas teses perdem completamente sentido ante as afirmações do 5º Encontro de que “continuamos vivendo uma crise organizativa no PT”; de que “hoje, estão evidentes as limitações de nossa organização, de nossas instâncias e quadros dirigentes”; de que “a fragilidade das estruturas orgânicas do PT teve início na campanha eleitoral de 1982”; e sobretudo de que o PT “até hoje, não conseguiu formular nem implementar uma política de organização que estimulasse o crescimento do Partido do ponto de vista orgânico (nucleação, formação política, finanças etc.)”.

Estas afirmações, feitas em 1987, mostram que a origem dos problemas de organização e funcionamento interno do PT é anterior à adoção da estratégia de conciliação de classes e até mesmo à conquista dos primeiros mandatos do partido para parlamentos e governos. Portanto, a desorganização e desmobilização da base não foi nem exigência de uma estratégia política, nem efeito do crescimento institucional do partido. A causa ou as causas foram outras.

Por Silvio Melgarejo, professor de música, filiado de base do Rio de Janeiro, para a Tribuna de Debates do 6º Congresso. Saiba como participar.

ATENÇÃO: ideias e opiniões emitidas nos artigos da Tribuna de Debates do PT são de exclusiva responsabilidade dos autores, não representando oficialmente a visão do Partido dos Trabalhadores

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