Silvio Melgarejo: Porque fracassou a política de núcleos de base

Continuação do texto “‘Nossos núcleos são poucos e precários’, já dizia o 5º Encontro, de 1987”

Fernanda Estima/Acervo Sérgio Buarque de Holanda
Tribuna de Debates do PT

Mulheres exibem bandeira da escola de samba Colorado do Brás em evento comemorativo . Da esquerda para a direita: Clara Charf, Telma de Souza

O 5º Encontro foi muito preciso ao apontar a desorganização da base de filiados do PT e o mal funcionamento da cadeia de comando do partido. Mas não foi capaz de enxergar claramente ou, se enxergou, preferiu omitir, que este era a principal causa daquela, que a desorganização da base era consequência direta e inevitável do mal funcionamento das instâncias dirigentes, tratou as duas coisas como questões paralelas. E não viu ou não quis admitir a relação intrínseca entre os dois problemas porque estava preso a uma proposta de esquema de funcionamento do partido no qual, de acordo com a resolução aprovada, “os núcleos devem ser entendidos como elementos de organização de base” enquanto os diretórios devem ser “elementos de centralização política e coordenação”.

A resolução do 5º Encontro diz que “se os núcleos devem ser entendidos como elementos de organização de base, de discussão e intervenção, os Diretórios, as sub-regiões e as regiões devem ser fortalecidas como elementos de centralização política e coordenação”. Ou seja, estabeleceu-se, porque pretendia-se, que o agente organizador da base partidária deveria ser o núcleo de base e não o diretório, que trataria apenas da centralização política, para construir a unidade de ação dos núcleos. Núcleos organizam, diretórios dirigem. Assim se definiu, quase como um princípio, que o partido teria que funcionar. Só que não funcionou.

A verdade é que a política de organização da base do PT em núcleos simplesmente fracassou. Em 1987 o 5º Encontro reconheceu isto e fez até algum esforço para tentar entender as razões do malogro, um esforço do qual resultou um texto que, entre explicações explícitas e implícitas, ou seja, apresentadas sob a vestimenta de medidas destinadas a sanar certas deficiências, toma alguns efeitos por causas, mas aproxima-se dos fatores realmente determinantes do insucesso quando toca na questão dos papeis da direção e da imprensa do partido.

RAZÕES APONTADAS PELO 5º ENCONTRO

Diz o parágrafo 218 da resolução do 5º Encontro:

“Atualmente, nossos núcleos de base são poucos e, na maioria das vezes, precários, havendo uma enorme distância entre os nossos desejos e a realidade. As razões disso são inúmeras: a pouca experiência política da maioria dos militantes petistas (o que é próprio de um partido em construção e que cresce rapidamente); de quadros organizadores; a falta de infra-estrutura para o funcionamento dos núcleos (o que nos remete à questão das finanças); a falta de maior formação política; os entraves que vêm da legislação partidária herdada da Ditadura, e que se expressam no nosso Regimento (que, na verdade, termina priorizando os Diretórios com relação aos núcleos).

O funcionamento regular dos núcleos deve ser estimulado e assistido pelos órgãos de direção, que devem tanto propor orientações políticas e propostas de atividades, quanto acompanhar essas atividades. Além disso, esse funcionamento regular exige uma alimentação constante pela imprensa do Partido, única forma de propiciar uma discussão política mais rica. Um jornal de massas é indispensável.”

Convém analisar com lupa este parágrafo para avaliar o real significado e valor de cada fator apresentado. Em primeiro lugar, a mencionada “pouca experiência política da maioria dos militantes petistas” pode ser traduzida como “falta de quadros políticos”. Já o trecho “de quadros organizadores”, do modo como está redigido, não quer dizer absolutamente nada. Mas, compreende-se, pelo contexto, que, por um erro de redação, foi omitida a palavra “falta” antes dele, sendo, portanto, presumível que esta razão citada pela resolução seja, na verdade, a “falta de quadros organizadores”. A falta de quadros organizadores e a falta de quadros políticos são, a meu ver, fatores realmente relevantes que precisam ser considerados, assim como “a falta de maior formação política”, que também é mencionada e da qual pretendo tratar num capítulo à parte.

“A falta de infra-estrutura para o funcionamento dos núcleos (o que nos remete à questão das finanças)” não é, na verdade, causa e sim expressão da precariedade do funcionamento dos núcleos. Já o trecho que dá como razão desta precariedade “os entraves que vêm da legislação partidária herdada da Ditadura, e que se expressam no nosso Regimento (que, na verdade, termina priorizando os Diretórios com relação aos núcleos)”, é revelador do conceito absolutamente negativo que a vanguarda de 87 tinha dos diretórios e da intenção desta vanguarda de priorizar a construção dos núcleos em relação à construção dos diretórios. Esta intenção se explicita claramente no parágrafo 226 da resolução, que diz que “a construção do PT deve priorizar a nucleação dos filiados e militantes, a assistência aos núcleos de base já existentes e a criação de novos núcleos”.

Tratemos agora das razões do fracasso da política de núcleos implicitamente reconhecidas pelo 5º Encontro. Subentende-se da afirmação de que “o funcionamento regular dos núcleos deve ser estimulado e assistido pelos órgãos de direção, que devem tanto propor orientações políticas e propostas de atividades, quanto acompanhar essas atividades”, que nada disso era feito em 1987, senão não precisaria ser recomendado.

Faltava, portanto, além dos quadros de base, para fundarem e manterem o funcionamento dos núcleos, a presença dos membros dos diretórios na base, fomentando e liderando o processo organizativo. O problema é que a saúde dos diretórios nunca foi muito melhor do que a saúde dos núcleos. O próprio 5º Encontro informa, que “o funcionamento das nossas instâncias diretivas é extremamente precário”. E o funcionamento das instâncias diretivas era precário exatamente porque, de acordo com o parágrafo 201 da resolução, “no anseio de criar um partido aberto, democrático e de massas, deixamos num segundo plano a organização de suas instâncias”.

E, finalmente, ao dizer que o funcionamento regular dos núcleos “exige uma alimentação constante pela imprensa do Partido, única forma de propiciar uma discussão política mais rica” e que, por conseguinte, “um jornal de massas é indispensável”, a resolução do 5º Encontro deixa implícita, como mais uma causa do fracasso da política de núcleos de base, a falta de um jornal nacional do PT que chegasse a todos os filiados. A produção e distribuição deste jornal, por sua vez, dependeria do funcionamento pleno e regular de todos os diretórios, o que, como já vimos, não acontecia naquela época, como não acontece hoje.

De modo que faltavam quadros de base, faltava a presença e o trabalho político e organizativo dos dirigentes na base, faltava o funcionamento pleno e regular dos diretórios e faltava um jornal do partido que chegasse a todos os filiados. De todos os fatores citados de forma explícita ou implícita pela resolução do 5º Encontro como causas do fracasso da política de núcleos, considero que estes são os únicos realmente válidos e que merecem ser considerados. E todas estas causas continuam presentes no PT até hoje, produzindo exatamente os mesmos efeitos que produziam em 1987: a completa inviabilização da política de núcleos e a preservação de uma situação de absoluta desorganização e desmobilização na base do partido.

FUNDAR E MANTER UM NÚCLEO: DIREITO DE TODOS, DEVER DE NINGUÉM

A primeira coisa que se precisa ter claro, para entender o fracasso da política de organização da base de filiados do PT em núcleos é que, estatutariamente, fundar e manter um núcleo é um direito de todo filiado, mas não é dever de ninguém. E direito se exerce quando se quer. Ou melhor, quando se quer e quando se pode. Porque, quase sempre o que acontece é que o desejo do filiado de fundar um núcleo, por maior que seja, esbarra e para na sua falta de aptidão e meios para a realização do conjunto das tarefas políticas e administrativas que esta iniciativa necessariamente envolve. Então o filiado acaba desistindo de fundar o núcleo ou, quando funda, não consegue manter ou mantém o núcleo de modo muito precário.

A instituição desta unidade de construção partidária chamada núcleo de base, significa que o partido admite e espera a auto-organização dos filiados. O núcleo de base, quando se materializa tal como idealizado, é e será sempre um produto da auto-organização da base. Por isso é que a resolução do 5º Encontro diz que “é preciso que façamos uma verdadeira campanha no sentido de ganhar os petistas para a ideia da importância de organizar os núcleos”.

Mas e se os filiados de base não quiserem ou não se sentirem capazes de se auto-organizarem, se, por esta falta de motivação ou competência, ao invés de tomarem qualquer iniciativa, esperarem pela iniciativa e comando dos dirigentes para o trabalho organizativo? O que fazem os dirigentes? O que fazem quando não acontece espontaneamente a auto-organização dos filiados que se espera que haja? Cruzam os braços e lamentam?

Pois é exatamente esta atitude omissa que os dirigentes do PT têm tido desde sempre, quando deveriam, isto sim, chamar para si a total responsabilidade pela organização da base do partido, assumindo o papel de organizadores, como certamente deles espera a maior parte dos filiados. Porque se para os filiados de base, a auto-organização é um direito democrático que precisa ser conservado, para os dirigentes do partido, o trabalho de organização da base deveria ser obrigação. O problema é que, até hoje, não é. Por isso é que a política de núcleos fracassou e é por isso que a base do PT nunca pode ser organizada. Afinal, como pode uma política dar certo se ninguém é responsável por ela, se sua realização é opcional, facultativa, se esta política não é uma clara e firme determinação do partido, mas apenas uma sugestão, que quem quer segue e quem não quer deixa de lado?

A verdade é que a base do PT precisa ser organizada, com ou sem núcleos, porque sem uma base de filiados organizada não se realiza nem a democracia interna do partido, nem a política que o partido precisa levar para as ruas. Mas se queremos que esta organização seja em núcleos é preciso que tenhamos claro que uma base de filiados não cultivada pelos diretórios muito dificilmente os produzirá, porque faltará comando para o trabalho organizativo e estarão ausentes os quadros dirigentes e ainda inativos os potenciais quadros de base, que a direção partidária poderia e deveria identificar e incorporar às suas equipes de trabalho.

Por Silvio Melgarejo, professor de música, filiado de base do Rio de Janeiro, para a Tribuna de Debates do 6º Congresso. Saiba como participar.

ATENÇÃO: ideias e opiniões emitidas nos artigos da Tribuna de Debates do PT são de exclusiva responsabilidade dos autores, não representando oficialmente a visão do Partido dos Trabalhadores

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