“Teremos o direito de comprar ferro velho”, diz Amorim sobre acordo militar com EUA

Para ex-ministro da Defesa, Donald Trump quer manter Jair Bolsonaro submisso e não permitirá desenvolvimento estratégico do Brasil

Karol Santos

Celso Amorim

O governo Bolsonaro assinou, no último domingo (8), na Flórida, um acordo militar com os Estados Unidos com o objetivo de ampliar a entrada do Brasil no mercado de defesa estadunidense, o maior do mundo. A decisão ocorreu durante uma viagem do presidente brasileiro ao país do Norte, que contou com reuniões com Donald Trump.

Apesar de ser vangloriado pelo governo Bolsonaro, para Celso Amorim, ex-ministro de Relações Exteriores e da Defesa nos governos Lula e Dilma, respectivamente, o Brasil não será beneficiado com o acordo.

Segundo a avaliação do diplomata, Trump deseja “colocar o Brasil debaixo do braço”, ou seja, manter Jair Bolsonaro completamente alinhado à política estadunidense com a finalidade de privilegiar o país norte-americano. “E se para botar o Brasil debaixo do braço for necessário fazer comprinhas ou vender algumas coisas de segunda mão, farão. Mas não podemos ter ilusões sobre isso”, analisa Amorim.

A partir do acordo conhecido como RDT&E (sigla inglesa para pesquisa, desenvolvimento, testes e avaliação), os países poderão desenvolver cooperação militar, parcerias na área da Defesa, além de compra de produtos como armamentos e equipamentos.

“Não vamos ganhar nada. Vamos, talvez, ter o direito de comprar mais ferro velho deles, como ocorreu no passado. Eventualmente, uma ou outra coisa menor. Mas eles não nos deixarão ter nada de estratégico”, avalia o diplomata.

Assinado por Fernando Azevedo e Silva, ministro da Defesa, e por Craig Faller, almirante da Marinha dos EUA, o tratado bilateral tem sido considerado o principal resultado da designação do Brasil como aliado privilegiado extra da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), a aliança militar ocidental, status concedido ao país em março do ano passado, durante visita do presidente brasileiro a Washington.

O acordo precisa ainda de ratificação dos Congressos de ambos os países. A expectativa no Itamaraty é de uma tramitação rápida na casa legislativa brasileira, assim como a que permitiu o uso da base de Alcântara, no Maranhão, pelos Estados Unidos.

Além disso, durante o encontro entre os mandatários no final de semana, representantes do governo Trump reforçaram a escalada de pressão contra a Venezuela e endossaram contar com o apoio de Bolsonaro, que tem respondido às expectativas. Dias antes à ida aos Estados Unidos, o governo do Brasil retirou quatro funcionários de postos diplomáticos no país de Nicolás Maduro.

“Não houve na história um momento de alinhamento tão grande com a política norte-americana”, critica Amorim.

Brasil de Fato: O Itamaraty afirmou que esse acordo entre Brasil e Estados Unidos é um passo para que os países “desenvolvam projetos conjuntos na área de defesa”. Quais impactos esse tratado pode trazer para o Brasil? O que ele prevê, de fato?

Celso Amorim: Acho que o tratado que, na verdade, os Estados Unidos têm, relativamente, em poucos países, é para colocar o Brasil realmente na órbita norte-americana em matéria de defesa. Obviamente se fala do Brasil exportar produtos mas, na verdade, vão ser produtos que se encaixem, digamos assim, nas necessidades norte-americanas.

Com isso, está se afastando de uma ótica que vinha sendo seguida com muita força no governo Lula e Dilma, e mesmo antes, que era ter uma visão multilateral do seu relacionamento de defesa. Nós tínhamos, por exemplo, uma relação muito privilegiada com a França, inclusive com o submarino nuclear, que é uma coisa muito importante. Os caças Gripen com a Suécia, que têm, inclusive, o código-fonte de armas, que seria transferido para o Brasil. Chegamos até a considerar também compra de artilharias antiaérea da Rússia, sem prejuízo de ter uma relação intensa com os Estados Unidos, como sempre tivemos.

Agora, o que está ocorrendo é que o Brasil está sendo colocado na órbita norte-americana de uma maneira que nunca foi antes. Essa é nitidamente uma opção dos Estados Unidos, que se deram conta, talvez, que o Brasil é estratégico na América do Sul e na América Latina. Eles têm muita preocupação com o petróleo, veja agora o que está ocorrendo com os preços, inclusive isso desloca o xisto norte-americano no mercado.

Não é à toa que eles têm tanto interesse na Venezuela e passaram a ter no Brasil. Esse é um aspecto fundamental. Outro aspecto é que isso está ligado a uma política de alinhamento total. Não houve na história um momento de alinhamento tão grande com a política norte-americana.

Já que nós falamos da Venezuela, isso é ilustrativo. Dias antes do presidente ir para a Flórida, o Brasil fez um gesto de retirar seus diplomatas da Venezuela, como preparação para anunciar para que os diplomatas de Maduro saíssem [do Brasil]. Tudo isso, dentro de uma perspectiva de submissão, uma visão que nunca foi a nossa. Independente de governo mais à direita, mais à esquerda. O presidente Fernando Henrique Cardoso [PSDB] tinha relações normais com Chávez [ex-presidente venezuelano].

Acho que há uma decisão, como houve na Segunda Guerra Mundial, só que nosso presidente era Getúlio Vargas, que sabia negociar, levar em conta a realidade. Por que estou falando isso? Porque existe uma rivalidade crescente com a China e com a Rússia, e os Estados Unidos veem hoje, no Brasil, um aliado potencial.

E o Brasil não vai ter grandes benefícios. O Vargas ainda conseguiu fazer a siderúrgica, algumas coisas. Acho que é possível que comprem alguma coisa, algum armamento, de menor importância no Brasil. Mas vamos ficar muito dependentes tecnologicamente e estrategicamente de um único provedor, e isso não é um bom no mundo de hoje.

Confira a íntegra da entrevista do Brasil de Fato

 

Por Brasil de Fato

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